O possível acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia está de volta à lista de assuntos que nunca chegam ao fim que prometem. O retorno é boa oportunidade para desmistificar certos mitos, ideias que passam por verdades estabelecidas, mas não se sustentam ao se conhecer a realidade das negociações comerciais.
Dois mitos de fôlego são os de que: 1) preconceitos ideológicos do governo inviabilizam acordos comerciais com países ricos; e 2) a Argentina é o grande obstáculo às negociações para derrubada de barreiras de sócios comerciais do Brasil.
A Argentina exagera em seu viés protecionista, mas, em algumas negociações comerciais, age incentivada por associações empresariais brasileiras. A diplomacia brasileira, de fato, tem prevenção contra certos modelos de acordo dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – nações como os EUA e as principais potências europeias. São acordos que vão além de comércio, enrijecem regras de propriedade intelectual e impedem prioridade a fornecedores nacionais nas compras do governo, entre outros pontos – questões de política econômica, não de mera ideologia, que merecem debate.
Há freios mais fortes às negociações do Brasil no próprio setor privado brasileiro. As associações empresariais são o veículo preferencial para o acionamento desses freios, mas elas agem somente quando se aproxima do fim alguma negociação importante – como foi o caso, anos atrás, do acordo quase assinado entre Mercosul e Conselho de Cooperação do Golfo (CCG). O acordo, que abriria mercado em uma das regiões de maior crescimento de importações do mundo, era prioridade do governo, mas foi bloqueado por pressão da indústria química nacional, que teme os planos de produção petroquímica futura dos árabes.
Curiosamente, o acordo com o CCG é apontado entre as prioridades na agenda para os candidatos à Presidência formulada pela Confederação Nacional da Indústria (menosprezando o papel da Abiquim, a associação do setor químico, em bloquear a negociação). O documento da CNI cita, coerentemente, a necessidade de acordo com grandes mercados, como EUA e União Europeia. Os EUA, porém, até hoje não aprovaram no próprio Congresso o acordo de comércio assinado com a Colômbia em 2006; não reúnem condições políticas para aceitar os pleitos do Brasil em agricultura e setores competitivos, como aço ou suco de laranja.
O caso dos europeus é ainda mais interessante. Embora entidades heterogêneas, como a CNI e a Fiesp, anunciem interesse no acordo com os europeus, uma variedade de associações empresariais batalha nos bastidores contra a negociação. Quem conversa com integrantes da Eletros, por exemplo, sabe que os fabricantes brasileiros de eletroeletrônicos querem mercado aberto com países na América do Sul e alguns emergentes, mas pedem distância dos europeus, americanos ou asiáticos. A Abiquim também se manifesta discretamente contra o acordo com a UE, assim como a Abinee, da indústria eletroeletrônica, e o Sindipeças, de peças e partes automotivas.
Até a Anfavea, do setor automotivo, está dividida na questão e, antes interessada no acordo, perdeu entusiasmo com as negociações. Os empresários sabem que são injustos quando atribuem apenas ao governo a timidez em acordos assinados recentemente com países como Índia e África do Sul. Os empresários do setor automotivo são os primeiros a apontar problemas em abrir o mercado brasileiro aos indianos e sul-africanos. O setor têxtil endossa as prevenções contra a Índia.
As pressões que se manifestam quando o governo está prestes a concluir negociações não raramente incluem ameaça de bloquear o acordo no Congresso, se assinado. A última dessas manifestações foi feita pela Abit, do setor têxtil, que, em carta a vários ministérios, se recusa a fazer qualquer concessão para fazer andar a negociação em curso com o Egito, com países de menor desenvolvimento relativo como Camboja, com os países da chamada rodada São Paulo da Unctad, como Coreia do Sul ou Índia. Com a UE, pede firmeza na exigência de regras de origem, demanda legítima.
Submetidos a juros recordistas, ao câmbio valorizado em relação ao dólar, a concorrentes com preços artificialmente baixos, a tributos escorchantes e infraestrutura deficiente, não é por tara protecionista que empresários nacionais rejeitam os acordos (ainda que alguns busquem nas barreiras comerciais a solução para problemas de eficiência). A CNI cita estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), segundo o qual a melhoria da infraestrutura nacional garantiria vantagens maiores que um acordo de comércio com grandes parceiros. Uma queda de 10% no custo de transportes aumentaria em 30% as vendas aos EUA; uma queda de 10% nas tarifas elevaria as exportações para lá em apenas 1,9%.
O necessário debate sobre o empenho comercial brasileiro exige que sejam deixados de lado os mitos, relevantes apenas para uso em palanque, e se discutam as verdadeiras questões que bloqueiam as negociações de comércio do Brasil com o mundo.