O telefone de Pascal Lamy, diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), toca bem mais nos últimos tempos, com autoridades de vários países fazendo a mesma indagação: como a entidade pode ser acionada para combater a influência de desvalorizações competitivas de moedas sobre o comércio.
Lamy invariavelmente repete que o sistema de solução de disputas da OMC não é o local mais apropriado para tratar de câmbio. E sugere que o melhor caminho é um acordo multilateral, passando pelo G-20, hoje diretório econômico do planeta, e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Ao mesmo tempo em que Lamy alerta que políticas cambiais focadas em ganhar vantagem comercial desleal podem causar sérios riscos para a estabilidade econômica, a OMC se prepara silenciosamente para a hipótese de um conflito envolvendo a taxa de câmbio.
Artigo do Gatt sobre câmbio nunca foi utilizado
É que existe um artigo (XV, do velho Gatt) de “disposições sobre câmbio” interditando aos países membros utilizar medidas cambiais para influenciar no comércio. Esse artigo nunca foi utilizado nos 60 anos do sistema multilateral de comércio, é pouco claro e foi muito pouco interpretado. E em meio a retóricas beligerantes, várias hipóteses têm sido examinadas.
Primeiro, se os EUA abrirem uma denúncia contra a China por causa da taxa de câmbio do yuan, alegando violação do artigo XV, a carga da prova fica com Washington. Os americanos, ou outro parceiro que tomar a mesma iniciativa, precisam demonstrar que a cotação da moeda chinesa se mantém em nível artificialmente baixo para favorecer suas exportações.
Outra possibilidade é de os EUA ou outro país decidirem questionar a China, alegando que a manipulação do câmbio representa subvenção a uma indústria chinesa específica. Também nesse caso, os países devem apresentar provas de que a suposta subvenção prejudica seus produtores e exportadores e viola as regras da OMC.
Terceiro, se os EUA ou outro país agirem unilateralmente, impondo sobretaxa em produtos originários da China por causa de câmbio desvalorizado, a hipótese então é de Pequim recorrer ao xerife do comércio mundial.
Em todas essas situações, os juízes da OMC terão de fazer uma interpretação “criativa” para determinar se a taxa de câmbio chinesa está em conformidade com o artigo XV, se é subsídio ou dumping.
Tudo isso é difícil para responder. Em todo caso, se aparecer conflito nessa área, o xerife do comércio global terá de fazer consultas ao FMI e utilizar especialistas de câmbio.
O risco de uma disputa na OMC sobre câmbio pode ser atenuado, dependendo do que sair da cúpula dos líderes do G-20, dias 11 e 12 de novembro em Seul (Coreia do Sul), na qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quer ir com o novo eleito.
Na reunião preparatória dos ministros de Finanças, no fim de semana, na qual o Brasil teve participação importante, pela primeira vez foi possível abordar ao mesmo tempo a situação da China, com sua persistência em manter a moeda subvalorizada para dopar suas exportações, como a dos EUA, com uma política monetária frouxa demais, que derruba o valor do dólar e provoca estragos nos parceiros.
Os EUA causaram a surpresa, com a proposta de estabelecimento de metas numéricas para superávit e déficit nas contas correntes. O limite seria de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) até 2015. Foi rejeitada pela Alemanha, Japão, China, Brasil e Índia. Mas a ideia pode voltar firme à mesa dos líderes do G-20 e acentuar o confronto entre as maiores economias.
Na cena comercial em Genebra, a ideia americana surpreendeu pelo seu aspecto de “comércio administrado”. E ilustrou a que ponto os americanos estão dispostos a combater o desemprego recorde de 10% e evitar virarem o Japão, com crescimento de apenas 1% por quase duas décadas.
A expectativa entre negociadores é de que no G-20 em novembro possa sair um acordo específico de “diretrizes” para manter o equilíbrio no comércio, que reflete e determina as taxas de câmbio, em “níveis sustentáveis”. Na prática, os EUA veem a situação muito claramente: poder duplicar suas exportações em cinco anos, consumir menos e poupar.
Para Heiner Flassbeck, economista-chefe da Agência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), o mérito da discussão no G-20 é o reconhecimento, enfim, da precariedade do atual sistema monetário internacional. Este depende sempre das decisões de política monetária do Federal Reserve (o banco central dos EUA) que emite o dólar em função de suas necessidades e prioridades nacionais, sem levar em conta a situação do sistema internacional de pagamentos e da economia global.
A proposta da Unctad, de adoção de um sistema de taxa de câmbio flexível administrada, compatível com um saldo de contas correntes viável, é visto com desconfiança, mas faz lentamente seu caminho, pelo menos nos debates. “A proposta dos americanos é uma revolução, reconhecendo pela primeira vez o desalinhamento cambial indo para o lado errado”, se entusiasma Flassbeck.
Enquanto isso, um negociador que se preparava para telefonar para Lamy, que estava ontem na Alemanha, dizia que certo mesmo é que “os tempos são perigosos”, em meio a mudança de poder na economia mundial. E cedo ou tarde a OMC pode ser acionada para tratar de câmbio.