Redação (09/05/06)- As crises da agricultura brasileira são cíclicas. Desde os anos 80, há duas delas por década. A mais recente começou em meados de 2004. Até o fim deste ano, ela imporá prejuízos de 30 bilhões de reais ao setor. As dívidas dos fazendeiros ultrapassarão a casa dos 50 bilhões de reais. As estimativas mais conservadoras indicam que 100.000 postos de trabalho no campo devem desaparecer. Poucas vezes na história o setor sofreu danos tão grandes, mas esse é apenas um dos aspectos singulares da crise atual. A maior novidade é que, pela primeira vez, o governo é incapaz de resolver o problema. Em abril, tentou um expediente desse tipo e liberou 17 bilhões de reais para rolar as dívidas dos fazendeiros com os bancos oficiais. Pouco adiantou, porque grande parte dos débitos dos agricultores foi contraída junto às grandes tradings internacionais que exportam a produção brasileira de grãos. Na última safra, que foi colhida até abril, empresas como a Cargill, ADM e Bunge concederam cerca de 30 bilhões de reais em financiamentos aos agricultores. Os analistas do setor estimam que 40% deles não terá como pagar os empréstimos.
A maior parte do calote deve vir dos produtores de soja, que impulsionou o saldo da balança comercial brasileira nos últimos anos. O Brasil é o segundo maior exportador do grão, um mercado que está em contínua expansão desde 2000 por causa do aumento da demanda da China. Os preços da commodity continuam altos, mas os negócios com soja sofreram duros reveses a partir de 2004. O principal deles foi a desvalorização do dólar, que reduziu a receita obtida com as exportações do grão. A oscilação cambial surpreendeu os agricultores. A maioria dos grandes produtores, no entanto, poderia ter evitado as perdas fazendo operações de hedge cambial no mercado de futuros. Essas operações reduziriam sua margem de lucro, mas também impediriam que as flutuações do dólar pusessem seu negócio em risco. Em vez disso, optaram por investir os lucros obtidos nos anos de vacas gordas na aquisição de novas terras, tratores e insumos agrícolas. Neste ano, as perdas foram agravadas pelo alastramento da ferrugem asiática, causada por um fungo que reduz a produtividade da lavoura. A praga chegou ao Brasil em 2002. Poderia ter sido controlada de duas formas, ambas onerosas. A primeira envolve o uso de pesticidas, que são caros. A outra, com o cancelamento das safras de inverno ? a irrigação, muito necessária nesse período, facilita a proliferação do fungo. A doença já provocou prejuízos de 7 bilhões de reais. “É uma praga devastadora que pode inviabilizar a cultura da soja no país”, afirma o agrônomo André Pessôa, da Agroconsult.
O avicultor Valdomiro Bernardi, de Corbélia, no Paraná, montou uma granja para criar 9 000 frangos por ano. Operava com toda a capacidade até janeiro. O vírus da gripe aviária ainda não chegou ao Brasil, mas o medo dos consumidores estrangeiros fez com que as exportações do país diminuíssem. Os clientes da cooperativa Copacol, para a qual Bernardi vende sua produção, passaram a cancelar pedidos de compra. A cooperativa comprava um lote de frangos de Bernardi a cada 55 dias. Depois que a crise começou, o intervalo aumentou dez dias e a produção da granja caiu 15%. Resultado: a renda de Bernardi, que era de 19 000 reais por ano, diminuiu um quinto.
No fim do ano passado, os produtores de soja começaram a parar de pagar suas dívidas com as tradings internacionais ? que, com isso, acumulam fortes prejuízos. Na última semana, a Bunge anunciou que seu lucro mundial já caiu 41% neste ano por causa das perdas no agronegócio brasileiro. O calote atual dificulta ainda mais a relação dos fazendeiros com as tradings, que financiam 60% da lavoura de soja no país. Os problemas tiveram início em 2004, quando fazendeiros de Goiás e do Paraná recorreram à Justiça para quebrar os contratos que haviam firmado com as exportadoras. Eles haviam se comprometido a vender a tonelada de soja por 10 dólares. Como o preço subiu para 17 dólares, recusaram-se a cumprir o contrato. A quebra de contratos, uma das pragas do Terceiro Mundo, ocasionou uma perda de 1,2 bilhão de reais para as tradings em 2004. No ano passado, essas exportadoras obtiveram vitórias importantes nos tribunais. Só que, escaldadas, elas passaram a exigir que as safras, os equipamentos e as terras dos agricultores fossem dados em garantia aos contratos. Por isso, quem der calote desta vez corre o risco de perder o patrimônio.
Grande e Imprevidente
No tempo das vacas gordas, o produtor de soja Roque Lázari, de Primavera do Leste, em Mato Grosso, investiu todo o lucro na compra de novas terras, máquinas e insumos agrícolas. Imprudente, contraiu empréstimos com juros altos e não fez nenhum seguro para se proteger das oscilações do mercado. A queda do dólar abalou sua capacidade de pagar as dívidas e, no ano passado, sua fazenda foi contaminada pela ferrugem asiática. Lázari perdeu 2 milhões de reais em dois anos. Afogado em dívidas, já demitiu trinta empregados e entregou aos credores três tratores e 5 000 hectares de terra. “Sou bom para plantar e colher, mas não sei fazer comércio”, diz.
A conjunção de fatores negativos sobre a soja não causará danos intransponíveis à balança comercial neste ano. Apesar dos problemas cambiais, o endividamento e a ferrugem asiática, a safra nacional de grãos deverá saltar de 114 milhões de toneladas no ano passado para 122 milhões de toneladas em 2006. O impacto da crise só terá efeito no comércio exterior em 2007, porque as tradings já avisaram que reduzirão os empréstimos para plantio e colheita de soja. “Na melhor das hipóteses, as multinacionais vão aumentar o custo dos financiamentos da próxima safra e o governo tem poucos instrumentos para resolver esse problema”, afirma o economista Guilherme Dias, que elaborou a política agrícola no governo Fernando Henrique Cardoso.
A crise também atingiu os exportadores de carne bovina e de frango, setores em que o Brasil também lidera as exportações mundiais. No caso da carne bovina, os prejuízos foram causados pelo aparecimento, no ano passado, de focos de febre aftosa em Mato Grosso do Sul e no Paraná. Em conseqüência da contaminação do gado, 56 países suspenderam as importações do Brasil, provocando prejuízos estimados em 3 bilhões de reais. A nova epidemia foi decorrência de um misto de incompetência do governo e malandragem dos criadores. Brasília afrouxou o controle sanitário feito sobre as fazendas para garantir a vacinação do gado. Os criadores, por sua vez, aproveitaram a brecha para fingir que tinham vacinado seu rebanho. Alguns assumiram riscos ainda maiores importando gado do Paraguai, que não exerce nenhum controle sobre a saúde do seu rebanho. Já os produtores de frango foram vítimas do acaso. Estão entre os mais eficientes do mundo, mas foram atingidos pelo temor da gripe aviária. O Brasil está fora da rota da doença e, até agora, não foi identificado nenhum sinal do vírus H5N1 em território nacional. Apesar disso, a queda no consumo de frango no mundo todo fez com que as exportações caíssem 20%. Os exportadores resolveram compensar as perdas reduzindo as compras de animais das granjas. Como a mercadoria que seria exportada foi destinada ao mercado interno, isso derrubou o preço do produto.