A agricultura brasileira tem uma má notícia para a turma que aposta na alta da inflação e, por consequência, no aumento dos juros ainda neste semestre: o País colherá até junho a segunda maior safra de grãos, leguminosas e oleaginosas da história. Os ganhos de produtividade acumulados nos últimos anos e as chuvas que arrasaram muitas cidades desde novembro passado fizeram bem ao campo, exceto ao arroz gaúcho.
Como em outros anos de El Niño, a safra 2009/2010 será gorda. O volume produzido crescerá 7,2% em relação à safra anterior, estima o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, com um aumento na área plantada de 2,1%. Responsável anualmente por 24% do Produto Interno Bruto (PIB), o peso da produção agropecuária brasileira é considerável. Especialmente no caso do cultivo vegetal, que responde por 71% do PIB do setor, enquanto a pecuária fica com os 29% restantes. Os empregos gerados no agronegócio equivalem a 37% do total.
Ainda que o recorde se mantenha com a safra 2007/2008, o resultado da colheita atual e o cenário para os próximos meses sugerem aos especialistas que a agricultura retomou a sua trajetória de recuperação, como se via antes de setembro de 2008. E que os perío-dos difíceis dos anos de 2004, 2005 e 2006, quando choveu pouco e algumas culturas foram prejudicadas por doenças como a ferrugem, em pouco tempo serão apenas história. A queda das exportações levará algum tempo para ser revertida.
“Embora esse período de crise ainda se reflita até hoje, a situação está melhor agora, e o dólar a 1,85 é razoável. Vamos colher uma safra capaz de abastecer o mercado interno, sem nenhum tipo de pressão de preço”, avalia Luís Carlos Guedes Pinto, vice-presidente de Agronegócios do Banco do Brasil. “Em alguns casos, como o do milho, por exemplo, a pressão será baixista, e o governo provavelmente terá de entrar para sustentar o preço de modo a remunerar os produtores.”
Com pouca presença no mercado internacional, o milho brasileiro tem sofrido os reflexos da conjuntura internacional e dos estoques volumosos. Nos EUA, a oferta cresce com rapidez, embalada pelos incentivos aos biocombustíveis, o que contribui para derrubar o preço internacional. Entre as principais commodities, o chamado complexo soja (grãos e itens processados) saiu-se bem, em boa medida devido ao consumo asiá-tico, de modo geral, e chinês, em particular.
Em 2009, o total de embarques somou 17,2 bilhões de dólares, praticamente igual aos 18 bilhões do ano anterior. Já as carnes sofreram com a retração da demanda no período pós-crise, especialmente a europeia. Muitos frigoríficos ficaram na mão e repassaram o problema aos pecuaristas, de modo especial na Região Centro-Oeste, onde muitos ainda amargam os prejuízos.
Em alguns casos, as margens ficaram ainda mais apertadas. De acordo com dados do Banco do Brasil, a receita líquida obtida pelos produtores de milho foi de apenas 34% (os de soja conseguiram 60%). Os reflexos desse problema são velhos conhecidos da agricultura nacional. Os resultados ruins desestimulam os produtores, que preferem em muitos casos trocar de cultura, à espera da recuperação dos preços. Esse movimento acaba por derrubar a área plantada na safra seguinte.
A tendência de valorização do real verificada em 2009 também teve papel relevante para aumentar a margem dos produtores. Como o País é um grande importador de fertilizantes, o dólar barato derrubou o preço dos insumos em até 25%. “A demanda pelos insumos e fertilizantes caiu nos primeiros meses após o início da crise, mas o efeito foi principalmente do câmbio, que derrubou os preços. A preocupação maior é justamente com a dependência dos importados. Mudar essa situação levará tempo”, diz Geraldo de Camargo Barros, coordenador científico do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP.
Em matéria de preços ao consumidor, Barros recorre a uma série histórica para a sua análise, iniciada em 1970. Desde então, caem em termos reais o preço dos produtos agrícolas pagos aos produtores, os valores cobrados no varejo e mesmo a média mundial.
“O que se vê, no Brasil e no mundo, é o reflexo do aumento contínuo da competitividade, que derrubou os preços em até 70%, mas que perderam força a partir de 2000. Foi importante que o Brasil conseguisse sobreviver à queda dos preços, principalmente por ela vir acompanhada de mais protecionismo, de mais concentração em toda a cadeia do setor e de produtividade crescente, o que força os produtores a reduzir custos”, avalia.
Os segmentos mais afetados com o aumento da concentração, diz o professor da Esalq, são os de grãos, carnes, etanol e açúcar, em que a atuação das tradings multinacionais é expressiva.
Pedro de Camargo Neto, presidente da Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína (Abipecs), diz acreditar que o setor como um todo sairá melhor do que entrou na crise. “No início de 2009, havia dificuldade para se conseguir crédito e também na comercialização, e isso passou. Esse momento difícil serve para valorizarmos a diversificação da produção brasileira destinada à exportação. Hoje vendemos para a China, Europa, Ásia, Oriente Médio, o que é benéfico”.
No caso das carnes, o mercado russo foi o mais atingido pelas turbulências que, entre outras coisas, levaram à falência vários bancos no país. Diante dessa conjuntura, o presidente da Abipecs estima que o Brasil exportará neste ano 607 mil toneladas, número semelhante ao de 2009. No caso do mercado interno, estima-se uma expansão nas vendas de cerca de 5%.
Para o setor agropecuário ganhar musculatura, há uma lista de pendências a ser enfrentada. Guedes Pinto, do BB, chama atenção para a falta de estímulo a mecanismos financeiros de garantia de renda. “Os produtores precisam iniciar o plantio da safra sabendo quanto vão receber pela produção lá na frente. Por isso considero fundamental a disseminação do seguro rural e das operações nos mercados futuros da Bolsa de São Paulo, de modo a minimizar os riscos.”
Como as margens são cada vez menores, é preciso aprimorar ainda mais a gestão de suas fazendas, com corte de custos e investimentos em qualidade. Ampliar a produção de fertilizantes (hoje- 90% do potássio, por exemplo, é importado), avançar a regularização fundiária e enfrentar as dificuldades de transporte também será fundamental.
Outro vespeiro que tira uma parcela da produtividade são os armazéns de estocagem. Ao longo dos anos 90, cerca de 70% dos armazéns públicos foram desativados. E os armazéns privados não ocuparam o espaço. Ao contrário do que acontece em outros países, as propriedades rurais brasileiras possuem uma baixa capacidade de estocagem – o BB estima que, da produção total, apenas 15% fique nas fazendas.
Na Argentina, o porcentual é de 40% e, no Canadá, de 100%. “Houve uma política deliberada de retirar o Estado dessas atividades, ainda que reconheçamos que havia muitos desvios nas empresas estaduais e federais de armazenamento”, diz Guedes Pinto.
É preciso recuperar esse atraso, dizem especialistas, até para melhorar a competitividade internacional da agricultura- brasileira. As exigências sanitárias e ambientais são crescentes, sem falar nos subsídios generosos dados pelos países ricos. De acordo com a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a participação dos fundos públicos na renda dos agricultores tem sido uma ferramenta importante para ganhar mercados e deter o avanço dos importados. No Brasil, essa fatia é de 5%. Nos EUA, de 18%. Nos países da União Europeia, chega a 34%, enquanto no Japão e na Suíça, dois exemplos extremos, o “colchão público” supera 60%.
“No Brasil, ainda usamos instrumentos menos eficientes, como a compra de estoques para sustentar os preços ou a ampliação dos prazos de pagamento das dívidas rurais, o que sempre sai caro. Por isso defendo a criação de subsídios às operações nos mercados futuros, do mesmo modo que hoje existe o subsídio para o seguro”, afirma o executivo do BB. O montante gasto atualmente no suporte de preços, cerca de 8 bilhões de reais ao ano, é considerado relativamente baixo, diz, dada a relevância do setor na economia brasileira.
Outro embate a envolver o setor diz respeito à legislação ambiental. Os produtores rurais argumentam que, em alguns casos, a lei atropela culturas tradicionais. O plantio de uva na Serra Gaúcha, da maçã em Santa Catarina ou do café em São Paulo e Minas Gerais seria atingido se for mantida a proibição de cultivo no topo de morros em que a declividade é superior a 45 graus. “O meio ambiente é importantíssimo, é vital, mas é preciso levar essa discussão com bom senso”, resume Guedes Pinto.