Redação (09/02/2009)- É mais séria do que parece a ameaça de forte perturbação, nos próximos meses, no relacionamento entre Brasil e Argentina. A sucessão de barreiras protecionistas contra produtos brasileiros provoca irritação no Palácio do Planalto e alimenta sugestões, no ministério, de retaliações contra mercadorias argentinas. Há também um esforço para, compreendendo a crise econômica em que se afunda o país vizinho, encontrar meios de aumentar a demanda por produtos argentinos, estimular a indústria do maior sócio do Brasil no Mercosul e buscar projetos de parceria. Mas o governo brasileiro quer, no mínimo, o fim da escalada de protecionismo contra interesses brasileiros.
Já prevenido dos problemas e da tendência protecionista, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu último encontro com a presidente Cristina Kirchner, no ano passado, acertou uma reunião ministerial de altíssimo nível, para discutir a relação. Chegam a Brasília, na quarta-feira, os ministros argentinos de Relações Exteriores, Jorge Taiana, o ministro de Economia, Carlos Fernández, a ministra de Produção, Debora Giorgi, além de funcionários graduados. Com seus pares no Brasil, falarão de barreiras comerciais e investimentos de lado a lado.
A agenda é misteriosa, até porque os argentinos só confirmaram a visita na sexta-feira. No Itamaraty, falam em discutir o comércio bilateral. Outras fontes dizem que o tema é a possível retomada de negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC). Mas também se informa que a reunião pode ser mais abrangente, até com a oferta de encomendas de estatais brasileiras a indústrias argentinas. Um objetivo é explícito: aparar arestas antes de março, quando Cristina Kirchner deve vir ao país em missão oficial. Até a Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) se esforça para evitar que a visita seja um fiasco recheado de reclamações de empresários prejudicados no Brasil por medidas adotadas contra a crise na economia ao lado.
A Fiesp, que tem consciência da importância do mercado argentino para a indústria brasileira, mobilizou-se para fazer da visita uma oportunidade de entendimento. Fez contatos com o governo argentino para promover um seminário (coisa de acadêmico), uma rodada de negócios (coisa perfeita para interesses pontuais de comércio e investimento) e reuniões setoriais, invenção política para tentar resolver, em discussões dos empresários de lá e de cá, os conflitos de interesse, as disputas de mercado, as pressões por levantamento de barreiras ao comércio e aos investimentos.
Sinal de encrenca à frente: essas reuniões setoriais goraram, por obstinado desinteresse dos argentinos. Entre certos setores argentinos, há um consenso de que podem desaparecer se não criarem proteções contra a avassaladora competitividade de brasileiros turbinados pelo BNDES. Quem quer discutir acordos nessa situação? A política industrial do governo brasileiro pode receber pouco crédito em casa, mas é invejada do outro lado da fronteira e usada como argumento para minar a balança comercial bilateral.
O crônico problema de competitividade do produto argentino motiva medidas de defesa comercial e os brasileiros não recebem tratamento preferencial, pelo contrário. À lista de empresas brasileiras que reclamam de ações abusivas somou-se, por exemplo, a Tramontina, tradicional fabricante brasileiro de produtos de cutelaria, que conquistou uma fatia de 20% do mercado argentino, onde outra fatia, de 15%, está nas mãos de fabricantes nacionais e há uma invasão de produtores asiáticos.
O governo argentino impôs uma sobretaxa de 412% sobre o produto brasileiro. Os empresários não entendem como as poucas empresas argentinas preencherão o espaço hoje tomado pelos competidores. A outra empresa sacrificada por barreiras argentinas é a Paramount, fabricante de fios acrílicos. É ameaçada de tarifas punitivas de até 30%, em um processo anti-dumping, caso não aumente seus preços naquele país. Empresários consideram a barreira sem justificativas técnicas e dizem que ela só facilitará a crescente penetração dos concorrentes asiáticos naquele mercado.
A Fiesp adota um tom ainda conciliador, na expectativa de um acordo que evite a disseminação de obstáculos hoje prejudiciais a menos de 5% do comércio entre os dois maiores sócios do Mercosul. Chama a atenção dos executivos brasileiros, porém, a animosidade por parte de membros do governo argentino, como o chefe dos negociadores argentinos na negociação da OMC, Alfredo Chiaradia, que fez duras declarações contra o Brasil mesmo após fracassadas as tentativas de um acordo no ano passado. Não era jogo de cena.
A Fiesp quer criar alguma espécie de fórum, para prevenir atritos antes que barreiras sejam criadas contra certos produtos. O governo, na reunião desta semana, caminha na mesma direção, de combinar o jogo antes que a partida degenere em pancadaria. No Brasil, setores como o da farinha de trigo querem abrir queixa na OMC contra a política de subsídios argentina, que favorece os produtores de farinha daquele lado da fronteira. O governo tem preferido processos anti-dumping, que limitam o conflito a empresas e não questionam políticas de Estado.
Mas até no governo brasileiro a tentação de retaliar contra a Argentina aumenta, como aconteceu na atropelada iniciativa de baixar licenças automáticas de importação no Brasil, há duas semanas. Houve nervosismo em Buenos Aires, que só não foi maior pela intervenção conciliatória do embaixador deles em Brasília, Juan Pablo Lohlé, que, como dizem por lá, pôs "panos frios" na discussão.
O termo, no Brasil, é "panos quentes", e divergências semânticas como essa são a menor das dificuldades entre os dois países. O FMI prevê um tombo olímpico na economia argentina neste ano, e não são pequenas as dificuldades nas contas externas do país. O setor privado brasileiro espera que as autoridades em Brasília, fãs de Ernesto Che Guevara como a cúpula do governo argentino, não percam a ternura jamais, mas endureçam nas conversas com o parceiro.