Terminou ontem um longo sequestro: a política comercial do Brasil para a Argentina foi refém, com implícita autorização oficial, do processo eleitoral no país vizinho. Decidida a presidência, ontem, no país vizinho, Brasília quer maior liberdade de ação. Não foi para ajudar na reeleição de Cristina Kirchner, prevista em todas as pesquisas de opinião, que o governo esforçou-se em sua “paciência estratégica” com as ações protecionistas no país vizinho. Foi cálculo político: atitudes mais agressivas no campo econômico provocariam reações do governo argentino mais voltadas ao público interno. Por isso, decidiu-se esperar.
Cristina Kirchner eleita, seu vice-presidente será o atual ministro da Economia, Amado Boudou. E, para o lugar de Boudou, pode ir a atual ministra da Indústria, Débora Giorgi, uma das algozes da indústria brasileira bloqueada na fronteira pelo protecionismo argentino. Nos gabinetes do governo brasileiro atribui-se boa parte das medidas protecionistas argentinas, a cargo de Giorgi, à campanha velada da ministra para ser promovia ao cargo de Boudou. Com a definição do novo governo, acredita-se, será possível travar negociações mais orientadas pelo pragmatismo e cooperação.
Nos últimos meses, os governos dos dois países encenaram um espetáculo em que os protagonistas sorriam um para o outro enquanto, por baixo da mesa, trocavam caneladas. Contra os atrasos na liberação de licenças de importação, que provocaram filas gigantescas de mercadorias brasileiras na fronteira, o Brasil passou a adotar medida semelhante. Primeiro com licenças não automáticas – e lentas – a automóveis, em maio; e, agora em outubro, quando os produtores de calçados e de alimentos brasileiros levantaram a voz contra a retenção prolongada de suas vendas aos argentinos, barraram-se chocolates e biscoitos vindos do país vizinho.
Governo tentará acordos bilaterais entre empresários
A cada acumulação de caminhões nas alfândegas, os telefones tocavam, entre o ministério da Indústria argentino e o do Desenvolvimento, no Brasil. E as liberações saíam, a conta-gotas. A equipe de Dilma Rousseff espera apenas a posse de Cristina Kirchner para chamar os parceiros argentinos para uma conversa séria sobre o futuro da relação comercial, voltada a descansar canelas e telefones de lado a lado. O ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, tem dito a interlocutores que quer reativar a Comissão Empresarial Bilateral, formada por executivos dos dois países, para traçar uma estratégia conjunta de comércio.
Aparentemente, Pimentel conta com a colaboração persuasiva das grandes montadoras, as empresas com maior capacidade de aproveitar as vantagens competitivas dos dois países, distribuindo por ambos os mercados suas cadeias produtivas. Na última conversa entre Dilma e Cristina, a brasileira disse à argentina que gostaria também de estimular o uso de estaleiros argentinos para fornecer embarcações ou componentes à Petrobras – certamente outro ponto na barganha por convivência pacífica com os vizinhos.
Pimentel está certo em buscar uma solução sem conflitos para as divergências no campo do comércio. Precisará, porém, de apoio do outro lado para uma estratégia conjunta de desenvolvimento econômico, utopia tentada desde que, em 1986, José Sarney e Raúl Alfonsin lançaram as bases do que se tornaria o Mercosul. Precisará de mudanças na estratégia argentina, no segundo mandato de Cristina.
A experiência passada de negociações bilaterais no setor privado não teve fôlego muito longo; os fabricantes brasileiros de eletrodomésticos, por exemplo, acreditam só ter perdido mercado para os asiáticos e nem querem ouvir falar em conversas com os similares argentinos.
Também não está claro que papel terá no novo governo o atual secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno, peronista polêmico de métodos bizarros, que incluem ameaças veladas e escancaradas a empresários argentinos, descritas pelo jornalista Ariel Palácios em divertido perfil publicado há dois anos. Moreno é quem, por ordens não escritas, tem criado restrições à compra de bens importados, inclusive brasileiros. Nas negociações com o Brasil, não participa, nem é chamado, embora sua influência seja decisiva.
Além disso, o governo vizinho considera bem sucedida sua estratégia de complicar de tal forma o trânsito de mercadorias que as empresas se veem forçadas a instalar fábricas em território argentino. Aconteceu isso com a brasileira baterias Moura e vem acontecendo com fabricantes de máquinas agrícolas – uma das maiores vítimas das vagarosas licenças não automáticas argentinas. A Argentina praticamente eliminou a concessão de licenças de importação a máquinas agrícolas brasileiras, e, nos últimos meses, assistiu a uma sucessão de anúncios de instalação de fábricas em seu território, da Case New Holland, da John Deere, e, na semana passada, da americana AGCO, que investirá US$ 140 milhões para produzir tratores, parte dos quais quer exportar ao Brasil.
“A Argentina necessitará nos próximos dez anos de 250 mil tratores; não podemos dar tal demanda interna de presente”, discursou Giorgi, ao saudar o anúncio da AGCO. No Comércio ou da Fazenda, ela promete continuar um interlocutor difícil para o governo brasileiro.