A paciência do mundo com relação ao desarranjo produzido pela política cambial chinesa começa a dar sérios sinais de fadiga. É muito difícil saber qual é a taxa de câmbio de equilíbrio, a começar pela definição de “equilíbrio do quê”? Do balanço comercial de bens e serviços? Do balanço de bens e serviços mais o movimento de entrada de capitais para investimento físico e saída de sua remuneração? Do balanço em contas correntes, quando existe amplo movimento de capitais, não apenas de investimento físico, mas também de aplicações em papéis do governo e do setor privado e de movimentos de arbitragem dos portfólios dos “investidores” internacionais?
A relação de conversão da unidade de moeda nacional (o real, por exemplo) com relação à moeda de referência de poder liberatório internacional (o dólar) conserva o mesmo nome (taxa de câmbio), mas seu papel como preço relativo, que iguala o fluxo da oferta de divisas (exportação mais investimento direto) com o fluxo de demanda (importação mais remessa de lucro) e organiza a corrente de comércio, explorando as “vantagens comparativas”, foi se metamorfoseando.
À medida que se ampliou o movimento de capitais, ela transformou-se num outro animal: o preço de um ativo que tem muito mais a ver com as oportunidades de arbitragem financeira internacional do que com o nível de atividade da economia. Passou a servir às conveniências financeiras, muito mais do que às necessidades da economia real e do emprego.
A assimilação da liberdade do movimento de capitais às vantagens comparativas do movimento de bens e serviços nunca passou de puro contrabando ideológico, apoiado na afirmação apriorística que o capital, com sua extrema racionalidade, sempre procuraria aplicações físicas nos países com maiores taxas de retorno a longo prazo. O contrabando foi facilitado pelo truque semântico de chamar de “capital” duas coisas com efeitos econômicos potencialmente muito diferentes.
Qual, por exemplo, o aperfeiçoamento da alocação dos fatores internos (isto é, para o desenvolvimento econômico) obtido com a atividade de pura arbitragem dos operadores internacionais, que têm em seus portfólios o real e que podem valorizá-lo ou desvalorizá-lo com movimentos especulativos capazes de alterar as estruturas produtivas? Qual a vantagem de aceitar o financiamento externo para a dívida do governo, quando ela é dissipada em consumo e não em investimentos de infraestrutura?
Talvez houvesse alguma vantagem se essa arbitragem levasse, efetivamente, a taxa de juro real da economia a igualar-se à taxa de juro real do mundo. Nessa circunstância, a taxa de câmbio recuperaria seu papel alocativo e ajudaria as políticas monetária e fiscal que levam ao desenvolvimento. Mas alguém pode acreditar nisso com a política econômica que praticamos nas últimas duas décadas?
O problema da China é que ela também não acredita! Abriu pequenas frestas para o capital financeiro, mas radicalizou no controle da sua taxa de câmbio (como se vê no gráfico ao lado), que agora incomoda o mundo.
É difícil precisar os números, mas toda a evidência disponível sugere que o yuan deve estar desvalorizado entre 25% e 40% com relação ao dólar (o nosso real, ao contrário, está valorizado entre 15% e 20%!). Isso dá à China uma formidável vantagem competitiva, sem contar os múltiplos e disfarçados suportes adicionais do Estado chinês à exportação.
O incômodo ficou mais forte em fevereiro, quando as exportações chinesas revelaram um crescimento anual de 46% (com todo o mundo ainda encolhendo). Em janeiro, os Estados Unidos registraram um déficit comercial de US$ 37 bilhões: US$ 18 bilhões com a China, US$ 7 bilhões com petróleo e US$ 12 bilhões com o resto!
O presidente Obama começa a sofrer pressão dos sindicatos. E não pode ignorá-la com uma eleição em novembro. O Congresso, pela mesma razão, está exigindo que o próximo relatório do secretário do Tesouro afirme, com clareza, que a China manipula a sua moeda, o que abriria automaticamente um processo legislativo e obrigaria o presidente a agir. Com o nível de tensão emocional vigente, isso poderá degenerar em grave ameaça de irracional protecionismo. A sugestão que hoje encontra apoio no Congresso é uma tarifa geral de 25% sobre todos os produtos chineses.
A situação não é fácil nem para os EUA nem para a China. O gráfico anterior mostra que o último movimento chinês foi no primeiro semestre de 2005 e terminou no primeiro semestre de 2008. A política de lenta apreciação controlada provocou, naquela ocasião, uma especulação financeira que aumentou as reservas chinesas em quase US$ 500 bilhões e ajudou a acelerar a taxa de inflação de 1% para 8% ao ano no mesmo período. A China tem feito “ouvidos moucos” à reclamação do mundo. Agora, com a “luz vermelha” acesa, despachou às pressas seus negociadores para os EUA. Gato escaldado tem medo de água fria…
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.