Quando Lula completou cem dias de mandato em março de 2003, era aprovado por 43% dos brasileiros. Naquele momento, a saca da soja valia US$ 12,3 no mercado internacional. Oito anos depois, Lula deixa o governo chancelado por 83% dos eleitores, e a commodity é negociada a US$ 28,7. Tanto a popularidade de Lula como o preço da soja dobraram nesse período. O aumento percentual próximo é coincidência matemática. Mas ainda que não seja passível de mensuração, o impacto do salto no preço da soja e de outras commodities que o país exporta sobre o legado lulista é inquestionável.
A principal fonte dessa maré positiva é a China. Crescendo a uma taxa média anual de 10% pelas últimas três décadas, o país se tornou um sorvedouro de alimentos e matérias-primas brutas.
Como principal exportador de minério de ferro e segundo maior de soja do mundo, o Brasil despontou como parceiro ideal.
O economista Eduardo Giannetti da Fonseca, do Insper, diz que, além da demanda da China, a conjuntura global também era favorável ao Brasil nos anos iniciais do governo Lula, com expansão robusta nos Estados Unidos.
O resultado foi que as exportações brasileiras tiveram um salto três vezes maior no primeiro mandato de Lula do que em toda a era FHC, atingindo US$ 138 bilhões em 2006. Depois alcançaram US$ 198 bilhões em 2008, ano em que eclodiu a crise financeira internacional.
O Brasil sentiu o baque da turbulência externa, mas se recuperou rapidamente. Em parte porque o governo, a partir de 2006, passou a comprar dólares avidamente.
As reservas internacionais (colchão de proteção do país contra choques externos) saltaram de US$ 40 bilhões no fim de 2002 para US$ 205 bilhões em setembro de 2008, quando estourou a crise. A munição acumulada nos anos de bonança ajudou a evitar a repetição da história de crises anteriores, quando a desconfiança sobre a capacidade de solvência da economia levava investidores a fugirem em massa.
Em 2008, o risco de calote do Brasil nem foi cogitado porque as reservas internacionais, pela primeira vez, eram superiores ao estoque de dívida externa total.
Mesmo com os países ricos se recuperando lentamente, as exportações brasileiras voltaram a crescer em 2010.
Por trás disso está novamente a China que, neste ano, desbancou os EUA como o país que mais importa do Brasil.
Efeitos colaterais – Os benefícios dos ventos chineses favoráveis ao Brasil são consensuais. Mas alguns efeitos colaterais da conjuntura causam preocupação.
Com o impacto da China, os produtos básicos, que eram 24% das exportações em 2002, hoje somam 45% do total. O peso dos manufaturados na pauta exportadora seguiu o rumo inverso.
Na década de 50, a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) dizia que os países dependentes da venda de commodities estavam fadados ao fracasso, já que historicamente os preços desses produtos básicos tendiam à queda, e os dos manufaturados, à alta.
Renato Baumann, ex-diretor da Cepal no Brasil, diz que a discussão mudou de tom.
“Não há nada contra a exportação de commodities.” Mas ressalta: “Desde que o país continue agregando valor aos produtos”.
Caroline Bain, editora sênior de commodities da Economist Intelligence Unit, diz que a vantagem do Brasil é ter uma pauta diversificada de commodities. Ela espera que os preços dos produtos básicos, especialmente alimentos, permaneçam altos.
Mas ela e outros analistas, como Michael Pettis, professor de finanças da Escola Guanghua de Administração, da Universidade de Pequim, afirmam que a concentração da pauta exportadora do Brasil em commodities expõe o país ao risco de variações bruscas nos preços desses produtos que tendem a se mover juntos.
Esse cenário poderia ser deflagrado por uma desaceleração forte da economia chinesa. “O Brasil tem se tornado muito dependente do crescimento da China”, resume Pettis.
Desequilíbrio externo volta a preocupar – Mais de dez anos depois, o país volta a enfrentar simultaneamente as três ameaças mais tradicionais à solidez da economia: inflação em alta, desequilíbrio crescente nas transações externas e excesso de gastos públicos. É o que o início do segundo governo FHC tem em comum com o final do segundo governo Lula. Guardadas as proporções: antes, havia o risco imediato de insolvência e recessão; agora, há um muito aguardado ciclo de prosperidade a perder.
A resposta de 1999 foi uma reviravolta nas políticas da Fazenda e do Banco Central, com a adoção do que se convencionou chamar de tripé macroeconômico, composto por superavits primários (despesas com custeio e investimento abaixo da receita), metas de inflação e livre variação do câmbio. Tornou-se lugar comum associar os sucessos dos anos Lula à permanência desses pilares na gestão petista. O tripé, porém, foi desgastado por uma década de uso e não basta mais como resposta às três ameaças.
Ao passar a poupar parte de suas receitas, o governo deteve a escalada da dívida pública do equivalente a 60% da renda nacional oito anos atrás, caiu para pouco acima de 40%, patamar que mantém tranquilos os credores domésticos e estrangeiros.
Os superavits prometidos não são cumpridos desde o ano passado, e anuncia-se um forte corte de despesas para recuperar a credibilidade perdida. O que importa agora não é apenas produzir números capazes de reduzir a dívida. Pelo consenso entre economistas, é preciso correr o risco político de conter gastos sociais para elevar investimentos em infraestrutura.
A livre flutuação do dólar reverteu a perda de reservas em moeda forte e com a disparada dos preços dos produtos primários de exportação, contribuiu para tornar o Brasil mais credor do que devedor externo. Mas o dólar só tem flutuado livremente para baixo, prejudicando as exportações e a indústria. Não há mais o cenário favorável que impulsionou a nossa economia na maior parte dos anos Lula.
Os EUA desvalorizam a moeda para recuperar a exportação e a produção, e os demais países se protegem como podem. Na prática, o câmbio só continua flutuante porque o governo não tem sido capaz de administrar as cotações. Se e quando conseguir, a prejudicada poderá ser a política de controle da inflação.