A alta dos preços dos produtos agrícolas fez o Brasil virar o jogo na Rodada Doha, propondo um acordo setorial na agricultura para compensar a abertura que deverá fazer nas áreas industrial e de serviços. Pelos acordos setoriais, os países interessados eliminam ou reduzem significativamente as alíquotas de importação de um segmento específico. O Brasil mencionou o setor de carnes como um dos que poderiam receber cortes tarifários maiores e em ritmo mais acelerado.
A proposta brasileira pegou Estados Unidos, União Europeia e outros desenvolvidos de surpresa, no momento em que a negociação de Doha se acelera, apesar do ceticismo sobre a possibilidade de ser concluída em novembro.
A proposta representa uma mudança na estratégia brasileira. Ao longo dos últimos dez anos de negociações, o sentimento comum era que a barganha com os EUA seria feita na seguinte base: o Brasil e outros emergentes fariam a abertura de seus mercados industrial e de serviços, enquanto os americanos cortariam substancialmente os bilionários subsídios agrícolas que distorcem o comércio mundial.
Os EUA têm proposta na mesa para cortar em 70% esses subsídios, limitando-os a US$ 14,5 bilhões por ano. Ocorre que o cenário global mudou. Com a alta dos preços das commodities agrícolas, seus produtores necessitam menos de subvenções e o montante pago para eles baixou para US$ 9 bilhões.
Diante desse cenário, o Brasil mudou o foco, de acesso ao mercado por redução de subsídios, para a troca unicamente em acesso ao mercado (corte de tarifa). O país considera que no, cenário atual, a negociação não é equilibrada e, por isso, não pode oferecer acesso ao seu mercado industrial e de serviços em troca de um ganho virtual. Em geral, os países em desenvolvimento vão cortar entre 50% e 60% de suas tarifas consolidadas. Se Doha for concluída com os americanos podendo dar US$ 14,5 bilhões de subsídios, eles não estarão cortando nada na prática, ou apenas “água”, como se diz no jargão da OMC.
Para Brasília, a alteração no jogo é ainda mais necessária quando projeções apontam manutenção da alta das cotações das commodities agrícolas pelo menos até 2015. Na presidência do G-20, o governo francês quer propor até controle de preços e criação de estoques regionais de alimentos, para reduzir a volatilidade no mercado.
Negociadores elogiaram informalmente a reação brasileira. A dificuldade, no entanto, é que os EUA têm uma margem para negociar subsídios, mas não seus parceiros como UE, Noruega, Suíça e Japão. Todos eles querem pegar uma carona no acesso ao mercado dos emergentes dinâmicos, sem pagar a contrapartida na área agrícola. Na verdade, a tendencia é de aumento nas barreiras agrícolas.
A surpresa com a proposta brasileira é ilustrada na falta de reação pública dos desenvolvidos. Até agora, 14 iniciativas setoriais foram propostas, mas só na área industrial, como químicos, produtos florestais, eletrônicos, automotivos e autopeças, têxteis e vestuário, pescado, gemas e joalheria, matérias-primas, brinquedos, bicicletas e equipamentos esportivos.
A proposta pode refrear pressões dos EUA para os grandes emergentes participarem de liberalização adicional, sobretudo em áreas como químicos e máquinas. Recentemente, Washington passou a novo patamar de cobrança, para que eles se comprometam em abrir seus mercados em “nível similar” a dos países ricos e facilitar a entrada de produtos industriais e serviços.
Os EUA argumentam que, sem melhora na oferta de acesso ao mercado nas três grandes economias emergentes – China, Índia e Brasil -, será impossível para a Casa Branca aprovar um acordo de Doha no Congresso e também com os empresários.
O Brasil vem rejeitando sistematicamente demandas adicionais americanas de abertura de setores sensíveis da indústria brasileira. E apresentou a proposta de setorial agrícola com cautela. Indicou que poderia contemplar eventuais ajustes para atender algumas demandas na área industrial, desde que seja compensado por maior liberalização para o setor específico de carnes, como passo inicial.
Ou seja, o país pode fazer ajustes em sua oferta de liberalização, mas que estarão longe de significar uma barganha entre setoriais agrícola e industrial ou atender às ambições americanas.
Desde a cúpula do G-20, em Seul, em novembro, o governo brasileiro diz aos parceiros que, em sua avaliação, 98% da negociação de Doha já está concluída e só restam 2% para concessões mínimas.
O governo de Dilma Rousseff parece bem menos flexível em termos de abertura do mercado brasileiro. Pela situação em que o país se encontra, o novo governo tem pouca capacidade para se comprometer com liberalização adicional.
O ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, deixou claro em Bruxelas, recentemente, que o país está interessado em concluir a negociação birregional UE-Mercosul, mas com limitações para concessões na área industrial, por causa do real fortemente valorizado.
Na OMC, os países repetem, até para acreditar, que agora é a última chance para concluir a Rodada Doha. É agora ou nunca, dizem em meio ao ceticismo generalizado. O embaixador Mario Matus, do Chile, conta que alguns negociadores hoje se referem à negociação como “Doha ah, ah, ah”, o que provoca sorrisos irônicos.
Para Matus, o grande desafio dos negociadores em Genebra é convencer as autoridades de que Doha ainda não morreu. O embaixador do México, Fernando de Mateo, disse que Doha corre o risco de ter o mesmo destino da fracassada Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A última rodada de negociação da Alca foi em 2003, e o governo do México acabou fechando o secretariado da negociação em 2009, na cidade de Puebla, dando o enterro como oficial.