A França coloca entraves ao avanço de um acordo de livre comércio entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, ameaçando, na prática, as perspectivas da cúpula dos líderes das duas regiões em maio, em Madri. A forte pressão dos produtores franceses de carnes levou a indústria europeia a se mobilizar com urgência na semana passada para insistir na importância do acordo. No entanto, ao mesmo tempo a indústria aumenta as exigências e agora cobra do Mercosul abertura de 100% de seu mercado, e não apenas de 90%, como até então.
É nesse cenário que ocorrerá hoje e amanhã a reunião técnica entre os dois blocos, em Bruxelas, marcada para indicar até que ponto haverá espaço para o relançamento da negociação em Madri. “Nem os franceses, nem ninguém na Europa têm como aceitar um acordo que dê mais acesso ao Brasil no mercado europeu, principalmente para carnes”, afirmou ao Valor o irlandês Padraig Walshe, presidente da poderosa central Copa.
Duras campanhas do setor agrícola europeu contra um acordo envolvendo o Brasil e a Argentina não são novidade. Dessa vez, porém, a posição da França, por seu peso na cena europeia, pode empurrar, na prática, as discussões para um novo fiasco. Apesar de belos discursos sobre a “parceria estratégica” com o Brasil, o presidente Nicolas Sarkozy não parece ter intenções de ir contra o lobby agrícola, tal sua fragilidade política no momento.
Percebendo o perigo, associações industriais da Europa entraram em campo já um pouco tarde, se mobilizaram junto ao presidente da Comissão Europeia, José Durão Barroso, ao comissário de comércio, Karel de Gucht, e ao líder rotativo da UE e primeiro-ministro espanhol José Luiz Zapatero, insistindo na “enorme importância” do acordo birregional. Argumentam que será “o mais ambicioso acordo birregional do mundo, envolverá 700 milhões de pessoas e será o primeiro entre duas uniões aduaneiras”. Além dos benefícios comerciais, a indústria europeia destaca que um acordo ajudará a proteger os atuais investimentos europeus no Mercosul e a instalar mais companhias na região. Outro argumento é de que o acordo “fortalecerá a presença ocidental e reduzirá espaço para outros grandes parceiros comerciais globais” no Mercosul – ou seja, contra os chineses.
Ao mesmo tempo, porém, novas exigências da indústria europeia tendem a agravar o impasse na negociação, que está paralisada formalmente desde 2004. Na última reunião dos dois blocos, no mês passado em Buenos Aires, o Mercosul atendeu a demanda europeia e voltou a ampliar a cobertura de 74% para 90% do comércio, incluindo a liberalização também do setor automotivo. Mas agora a BusinessEuropa, a grande central das indústrias europeias, diz que a situação mudou desde o acordo da UE com a Coreia do Sul, no ano passado, e quer que a cobertura seja de 100% do comércio. “Esse acordo elevou nossas expectativas”, diz Eoin O’Malley. Negociadores da UE argumentam que, no recente acordo com o Peru e a Colômbia, esse percentual também foi incluído.
Também o setor de serviços faz novas demandas de abertura do Mercosul para serviços de distribuição, ambientais e também de serviços para a indústria de petróleo, de olho no pré-sal. “Nosso interesse sobre compras governamentais é agora muito maior”, disse o chefe da Coalização das Indústrias de Serviços, Pascal Kerneis.
Mas, se cobram mais, os europeus recusam-se a fazer novas concessões. Refletindo a posição francesa, dizem que a UE não pode dar abertura para a entrada de carnes de frango e bovina e prometem que alguns produtos incluídos como cota na oferta de 2004 poderiam migrar para a desgravação, provavelmente suínos e arroz. E só acenaram com melhorias para o etanol, com uma cota que poderá ser bem superior à de um milhão de toneladas discutida em anos anteriores. O caso dos suínos é emblemático. O produto brasileiro continua bloqueado não por causa de tarifas, mas sim por barreiras sanitárias que a UE reluta em levantar há anos.
Negociadores do Mercosul apontam uma “dose de irrealismo” enorme do lado europeu ao esperar que o bloco se comprometa com a abertura total de setores sensíveis da economia sem levar em conta a assimetria entre as economias das duas regiões. O governo de Cristina Kirchner, na Argentina, pela primeira vez nos últimos tempos mostrou flexibilidade para liberalizar, mas avisa que isso também tem limites. Além disso, crescem as indagações sobre até que ponto Bruxelas é séria na negociação. Se está “fazendo teatro” ou se exige mais para dificultar um acordo que sabe que é contestado por países membros, como França, Irlanda e outros produtores agrícolas do Leste Europeu.
Pelo cenário atual, é provável que os lideres da UE e do Mercosul anunciem o relançamento da negociação birregional, mas sem conteúdo concreto. Sobretudo, sem a expectativa de conclusão acelerada, como era o plano original. “Isso é negociação para nossos netos”, comentou, com ironia e frustração, um diplomata de um país interessado no acordo com o Mercosul.