No final de setembro de 2002, em meio à forte crise, o dólar chegou a valer quase R$ 4,00. Como se confirmando a previsão bíblica de José da alternância de sete anos de vacas magras com sete anos de vacas gordas, o valor do dólar hoje caiu a menos da metade da cotação de sete anos atrás. O Brasil é a bola da vez, desta vez para o bem. É intensa a entrada de capitais no Brasil devido às boas perspectivas de nossa economia, agora elevada ao grau de investimento pelas três grandes agências de rating, e à volta da farta liquidez internacional. A taxa de câmbio retoma a tendência de apreciação, voltando a ser o principal tema do debate econômico.
Argumentos apaixonados aparecem com frequência. Na quarta-feira passada, o Valor reportou debate sobre câmbio, no qual um líder industrial manifestou a opinião de que “… a administração da moeda brasileira tem sido desastrosa” (Valor Econômico, 23/9/2008, página A3). Na página anterior, Cristiano Romero contrapôs as visões dos presidentes do BC e do BNDES sobre política cambial, destacando que “… o que fica claro é que o tema vai dominar as discussões daqui em diante, especialmente, no primeiro ano do governo eleito em 2010” (Valor Econômico, 23/9/2008, página A2). Naturalmente, as opiniões dos dois “policy-makers” não carregam a mesma paixão do debate reportado na página seguinte. Ainda assim, não deixam margem para dúvidas de que há enormes divergências no que tange ao futuro da política cambial.
O principal instrumento de política cambial ao qual o BC tem recorrido são as intervenções esterilizadas. Cumpre ressaltar que o BC sempre negou ser o objetivo de tais intervenções atingir uma meta, ou colocar piso ou teto, para a taxa de câmbio. Os objetivos declarados do BC com suas intervenções cambiais esterilizadas são acumular reservas como seguro contra crises e diminuir volatilidade excessiva ocasional no mercado cambial. Apesar disso, tais intervenções cumprem também o papel de apaziguar clamores para que o governo faça algo para mitigar a apreciação do real.
Em meu artigo anterior, em 28/8/2009, analisei a eficácia das intervenções cambiais esterilizadas em controlar a apreciação do real. Em princípio, não parece haver boas razões teóricas, nem evidências empíricas, que sustentem serem tais intervenções eficazes em alterar a tendência de longo prazo da taxa de câmbio, embora haja necessidade de muito mais pesquisa, teórica e empírica, sobre o assunto. Se, apesar da continuidade das intervenções cambiais esterilizadas do BC, a tendência de apreciação do real prosseguir nos próximos meses, entrando no novo mandato presidencial, não é improvável que o futuro governo seja tentado a implementar outro tipo de política cambial, visando conter o fortalecimento do real. Meu objetivo no artigo de hoje é refletir sobre as mudanças que ocorreriam na atuação do BC, bem como suas possíveis consequências.
A política monetária no Brasil, desde 1999, baseia-se no regime de metas para inflação. A operação deste regime se dá via a fixação de uma meta em médio prazo para a inflação. Com base na meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), o BC opera a política monetária fixando seu principal instrumento: a taxa de juros básica, a taxa Selic. A cada seis semanas, reúne-se o Comitê de Política Monetária (Copom) que analisa detidamente a conjuntura econômica e fixa o valor da taxa Selic que deverá vigorar até sua próxima reunião.
Fixada a meta para a taxa Selic, a mesa de open do BC encarrega-se de implementá-la via operações de mercado aberto. Isto é feito pelo staff do BC monitorando minuto a minuto a taxa Selic negociada em mercado. Se a taxa Selic cair muito abaixo da meta fixada pelo Copom, o BC enxuga liquidez, vendendo títulos públicos, até que a taxa Selic volte para perto da meta e vice-versa.
Suponhamos que o governo que assumirá em 2011 decida realizar intervenções cambiais não-esterilizadas com o propósito de reverter a depreciação do real. Como tais intervenções alterariam a condução da política monetária?
Naturalmente, a compra de dólares pelo BC injetaria moeda na economia, reduzindo a taxa Selic, que passaria a ficar abaixo da meta fixada pelo Copom. Mas, por hipótese, a mesa do BC não poderia reagir, pois, para depreciar o real, a compra de cambiais não poderia ser esterilizada via operações contracionistas de mercado aberto. Ou seja, tais operações cambiais são incompatíveis com o modus operandi do sistema de metas para a inflação.
Ciente deste raciocínio econômico básico, quem quer que esteja à frente das políticas monetária e cambial terá que, forçosamente, tentar convencer a sociedade de que o abandono das práticas do sistema de metas para inflação não colocará em risco o controle inflacionário. Provavelmente, ocorreria a tentativa de enfatizar alguma outra variável econômica, tentando tirar a atenção da taxa Selic, mas não seria fácil.
Defensores dessa estratégia lembram que a China consegue fazer a mágica de manter sua taxa de câmbio artificialmente depreciada sem ter, até hoje, problemas com inflação. Muitos desses entusiastas da experiência chinesa eram também defensores da política cambial argentina, que realizava intervenções cambiais não-esterilizadas. Entretanto, desde que a inflação, entre outros males econômicos, tornou-se problema grave no vizinho do sul, passaram a citar exclusivamente o exemplo asiático.
Há evidências de que a capacidade de se manter a taxa nominal de câmbio depreciada sem gerar problemas inflacionários, assim obtendo a almejada depreciação da taxa real de câmbio, esteja fortemente relacionada à taxa de poupança da economia. Como a taxa de poupança das economias brasileira e argentina são semelhantes, não chegando à metade da taxa de poupança chinesa, o exemplo relevante para o Brasil é o argentino, não o chinês.
Em síntese, se os anos de vacas gordas continuarem, é bem possível que o(a) próximo(a) presidente tente adotar novas formas de intervir no câmbio. Sem outras mudanças que elevem a taxa de poupança da economia, sobretudo no que tange à enorme deterioração do superávit primário que vem sendo observada, o resultado será um gradual abandono de fato do sistema de metas para inflação, com a consequente alta da inflação.
Márcio G. P. Garcia, PhD por Stanford e professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, escreve mensalmente às sextas-feiras ( http://www.econ.puc-rio.br/mgarcia )