O atraso no final da negociação da Rodada Doha, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), não deve ser visto como um desastre. Teria sido melhor finalizarmos um novo acordo, lógico, se representasse algum avanço significativo nas regras multilaterais de comércio. Não foi, porém, possível.
Outras prioridades tomam conta hoje da agenda internacional. A crise financeira não pode ser vista como página virada. Espera-se que os equívocos recentes levem os governantes a debaterem a necessidade de novas regras que garantam, no mínimo, maior transparência, reduzindo os desastres cometidos. O debate ambiental exige a prioridade de todos, em essencial um acordo para o clima, o que por si só é muito maior do que Doha. Esta deve esperar.
O atraso na Rodada não pode ser visto, porém, como o enfraquecimento da OMC. O que realmente existe é falta de prioridade global para avançar o consenso possível, que, todos sabem, seria pequeno, embora de relevância para o Brasil. Destaque-se, porém, que os interesses atualmente estruturados nos diversos acordos que compõem a OMC são muito grandes. É um equívoco deixar de garantir atenção para o potencial existente nos acordos já realizados.
Para a questão dos subsídios agrícolas, a rota do contencioso permanece aberta, além de mais fácil, agora que desbravada pelo caso do algodão.
Felizmente, os preços internacionais tiveram, em passado próximo, alta que reduziu o montante dos subsídios; porém, a recente queda de preços, e consequente alta de subsídios, resultado da crise financeira, nos obrigam a reagir com a experiência e jurisprudência adquiridas. Um acordo na Rodada seria muito mais tranquilo. No entanto, a rota do contencioso garante amplo espaço de atuação com resultado talvez superior ao que vinha sendo negociado na Rodada.
Em acesso a mercados, precisamos atuar com maior organização e vigor nas barreiras técnicas, sanitárias e fitossanitárias. As possibilidades de ampliação dos mercados são, nesse âmbito, muito maiores do que mesmo um bom acordo na Rodada Doha nos ofereceria.
No caso da carne suína, o potencial de expansão das exportações com a queda de barreiras sanitárias é muitas vezes superior ao que obteríamos na Rodada Doha. As 600 mil toneladas que atualmente exportamos poderiam ser triplicadas em menos de uma década. As quotas negociadas em Doha eram uma pequena fração desse montante. O caso não deve ser extrapolado para o restante da agricultura, porém serve de exemplo do potencial existente nas barreiras em tese técnicas.
Derrubar uma barreira sanitária envolve etapas. A primeira e mais importante é o Brasil ter, de fato, sanidade. Nem toda barreira sanitária é protecionismo injustificado. Todo país tem o direito de proteger a saúde pública, animal ou vegetal. Antes de tudo, portanto, é preciso existir serviços de vigilância e sanidade agropecuária eficientes. Para tanto a mobilização e parceria dos poderes públicos com o setor privado são essenciais.
A segunda etapa envolve convencer os países importadores que temos sanidade, o que nem sempre é fácil. Inúmeros tipos de atrasos e protecionismos injustificados são utilizados. É aqui que o Acordo sobre Sanidade e Fitossanidade da OMC, conhecido como SPS, precisa ser priorizado.
Negociado na Rodada Uruguai do antigo GATT, o SPS representa importante avanço ao exigir que qualquer barreira seja fundamentada na ciência. Existe um longo caminho a ser percorrido, iniciando com o reconhecimento das normas e procedimentos que oferecem as garantias de proteção, bem como o desenvolvimento de estudos de avaliação de riscos acarretados pelo comércio. O que é ciência, com o reconhecimento internacional obrigatório, abre também amplo espaço para divergências a serem enfrentadas. Assim, a rota para garantir a abertura dos mercados fica delineada, e o nosso papel é trabalhá-la com competência.
Voltando ao caso da carne suína, exemplificamos as dificuldades encontradas. Em maio de 2007, o estado de Santa Catarina obteve o reconhecimento da Organização Internacional de Saúde Animal (OIE) de região livre de febre aftosa sem vacinação, status sanitário máximo. Na sequência, o governo federal solicitou para os diversos países importadores a retirada da barreira sanitária.
O Japão enviou dois cientistas em novembro de 2007. Eles gostaram da primeira visita e encaminharam extenso questionário, respondido pelo Brasil, que encontra-se em análise em Tóquio. Não existe ainda previsão de uma segunda missão veterinária e da futura abertura do mercado.
Os EUA enviaram missão veterinária em abril de 2008. Teriam concluído a análise técnica em dezembro, porém a etapa seguinte de análise econômica dos efeitos da abertura sanitária, a redação das normas de abertura, a colocação em consulta pública por 60 dias e o atendimento aos questionamentos podem demorar ainda 24 meses. A análise técnica pela autoridade sanitária norte-americana foi até rápida, mas a etapa seguinte, em que a ciência deixa de se ocupar do animal e entra para o lado político é injustificada.
A Coreia do Sul não aceitava o conceito de região livre de doença. Foram necessários dois anos de protestos do Brasil para os coreanos alterarem sua legislação, que exigia que o país inteiro fosse livre. Iniciaram, agora, a avaliação e esperamos que sejam mais ágeis. O México, infelizmente, recusa-se a sequer iniciar negociações com o Brasil, o que talvez leve à rota de um contencioso.
A atuação do governo nesse tipo de tema tem melhorado, porém, considerando o grau de dificuldade encontrado na maioria dos casos, será preciso atuar com maior prioridade. Ainda não se chegou à compreensão de que fazer cumprir o Acordo de Sanidade e Fitossanidade garante maior acesso a mercados do que mesmo um bom acordo na Rodada Doha.