A China será um dos temas mais relevantes do Fórum Econômico Mundial para a América Latina, que começa hoje, no Rio. Amanhã, em plenário, será debatida a atração de investimentos para os países da Ásia e Oriente Médio; à tarde, haverá um painel sobre a China como parceiro comercial. No centro do programa do fórum estão a crise global e suas implicações para a América Latina. Na plateia, mais de 500 pessoas de 37 países, entre empresários, políticos, acadêmicos, líderes sociais e do mundo dos negócios. A ideia dos organizadores é reafirmar a aposta de que a América Latina pode transformar-se, agora, em parte da solução para o problema.
A China já ocupa essa posição. Depois de lançar um pacote interno de estímulo de cerca de US$ 600 bilhões (como proporção do PIB, o pacote chinês é três vezes maior do que o americano), Pequim tem procurado ampliar sua influência nas decisões que pretendem redesenhar o mapa da economia mundial. Com um cacife de US$ 2 trilhões em reservas, o país coloca em questão o papel do dólar, defende a reforma das instituições multilaterais, mostra disposição para financiar projetos em qualquer ponto do planeta e, para manter ativo o comércio bilateral com países emergentes, faz acordos para adoção de um sistema de pagamento em moeda local.
Um exemplo foi o acordo recente firmado com a Argentina. Na prática, a autoridade monetária chinesa coloca 70 bilhões de iuanes (equivalentes a 37 bilhões de pesos ou US$ 10 bilhões) disponíveis para as operações comerciais argentinas com o país asiático. Além disso, a China anunciou a assinatura de um contrato de exportação de petróleo com a Petrobras e afirmou estar disposta a criar uma joint-venture para atuar na exploração de petróleo no pré-sal e na produção de etanol.
Apesar da aparente descoberta chinesa da América Latina, a prioridade comercial do país asiático é ainda a África, acredita o economista José Roberto Cunha. Professor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e da Fundação Instituto de Administração (FIA), Cunha passou o último semestre de 2008 dando aulas na Universidade de Economia e Negócios Internacionais de Pequim. Ele conta que, na universidade onde lecionou, muitos alunos africanos tinham bolsas de estudo e compromisso de voltarem aos seus países de origem. “Eles (os chineses) estão formando uma elite africana que, certamente, terá uma relação de amizade futura com a China.”
Na África, os chineses, informa Cunha, atuam de uma forma que ele qualifica como flexível. Isto é, trocando a realização de grandes obras de engenharia – estradas, barragens ou construção de usinas elétricas – pela concessão de exploração de jazidas. Em resumo, o país africano “paga” a nova estrada ou barragem com as concessões. “Isso aconteceu no Congo, em Angola, na Nigéria e em outros países”, afirma.
É um modelo que não se copia com facilidade. Que outro país pode assumir o financiamento de obras e ser o caixa de compensação de pagamentos entre empresas tão distintas quanto uma companhia de engenharia e outra empresa que, por exemplo, explore petróleo? Esse arranjo pede, de fato, mais do que flexibilidade. Pede um Estado tão poderoso quanto centralizador.
Cunha, contudo, considera esse arranjo legítimo e respeitador das regras mundiais de comércio. Afinal, argumenta, os países africanos lucram com a possibilidade de realizar grandes obras sem ter de desembolsar recursos, que, diga-se, eles não teriam. Já a China conquista o acesso a reservas estratégicas de fornecimento de commodities, inclusive agrícolas, e de matérias-primas.
A escassez de recursos e o financiamento externo, acredita o professor, podem multiplicar acordos que permitem que o comércio bilateral seja pago em moeda local, nos moldes do firmado com a Argentina. E a universalização desses acordos bilaterais pode criar um mercado global para a moeda chinesa, que não é conversível.
Este é, aliás, um dos problemas levantados pelo economista sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Maurício Mesquita Moreira, na avaliação desses acordos comerciais que usam o pagamento em moeda local. “Como o real ou o iuane não são moedas conversíveis internacionalmente, acordos desse tipo podem obrigar o Brasil, por exemplo, a comprar mais produtos chineses”, alerta.
Embora não seja um entusiasta da ideia, Moreira diz que esses acordos podem, tomados certos cuidados (como o de limitar seu tamanho a apenas uma parte modesta do fluxo comercial entre os países), ser positivos. Mas, para ele, nem é esse o debate que deveria interessar ao Brasil.
Na África ou, agora, na América Latina, a lógica dos acordos pretendidos pela China é a mesma, e deve ser vista com cautela pelo Brasil, acredita o economista do BID. “A China quer expandir seu controle sobre o fornecimento de matérias-primas e alimentos, enquanto deseja continuar exportando produtos industrializados. Isso é muito século XIX”, sentencia, para depois acrescentar: “Não me parece que o Brasil deva aceitar essa relação comercial, até porque não é essa relação comercial que ele tem ou pretende ter com outros países.”
De fato, os números do comércio bilateral Brasil-China corroboram as preocupações levantadas por Moreira. Segundo mostra estudo da CNI, em 2008, a soja foi o principal produto de exportação do Brasil para a China, seguida do minério de ferro e do petróleo. De outro lado, as importações estão concentradas em manufaturados. O principal capítulo das importações é o de máquinas, equipamentos e materiais elétricos, que representou, em 2008, 31,5% do total.
Em resumo, a parceria com a China é estratégica para o Brasil e para a América Latina, especialmente em um mundo em clara transformação e no qual os chineses terão um peso relativo mais relevante do que tiveram no passado. Contudo, é fundamental, como acredita o economista do BID, que as relações comerciais não consolidem a tendência atual de uma relação de troca entre produtos primários brasileiros e manufaturados chineses.