O sebo bovino representa “a quase totalidade” de gordura animal utilizada na produção de biodiesel no Brasil, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Nova Marilândia (MT), uma pequena cidade do sudoeste do Mato Grosso, pode ajudar a mudar esse dado: lá funciona a BioPar Parecis, usina inaugurada em 2007 que passou a produzir biodiesel em escala comercial no último trimestre de 2008, utilizando principalmente óleo de soja como matéria-prima.
A grande aposta da Biopar, porém, é na avicultura: a usina tem contrato de exclusividade para utilizar o sebo dos frangos abatidos no frigorífico da Perdigão recém-construído no município, que deve ser inaugurado ainda neste semestre, com capacidade para abater 140 mil aves por dia.
De acordo como prefeito de Nova Marilândia (MT), Juvenal Alexandre da Silva, a produção atual do município é da ordem de um milhão de frangos por mês, todos eles abatidos no frigorífico da Perdigão em Nova Mutum. “Se o frigorífico daqui começasse a operar hoje, isso daria para pouco mais que 7 dias de funcionamento”, reconheceu o prefeito.
Em 2007, Nova Marilândia abrigava 1,44 milhões de galos, frangas, frangos e pintos, segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O município era o quarto maior produtor de aves do Estado, atrás apenas de Campo Verde, Tangará da Serra e Nova Mutum, em ordem decrescente. O rebanho aviário do Mato Grosso, porém, ocupava a oitava posição no ranking nacional, liderado pelo Paraná e seguido de São Paulo, Santa Catarina , Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Goiás e Pernambuco.
Para atender ao novo frigorífico da Perdigão, portanto, Nova Marilândia (MT) precisará ampliar e reestruturar sua avicultura. Dos 110 aviários existentes, 87 não atendem às regras do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e/ou às normas da União Europeia (mercado prioritário da região).
O aviário construído por Delvido Pereira da Silva, por exemplo, tem 12 metros de largura por 72 metros de comprimento, extensão que crescerá para 125 metros, aumentando a capacidade de 12 mil para 20 mil aves abrigadas. Esse verdadeiro galpão de engorda de frangos fica na beira de uma estrada, o que é proibido pela Instrução Normativa 56, editada pelo Mapa em 2007, que estabelece uma distância mínima de 500 metros entre “o estabelecimento de ave comercial de corte” e “a estrada vicinal, rodovia estadual ou federal”.
A exigência está ligada a preocupações sanitárias: a proximidade entre um aviário e locais com grande tráfego de pessoas ou veículos, segundo a legislação, “pode interferir na saúde e bem-estar das aves e na qualidade do produto” – o que, em última instância, é um risco para a saúde e bem-estar da pessoa que consumirá aquele produto.
O impulso à avicultura da região demanda investimentos de aproximadamente R$ 86,5 milhões. Segundo o secretário extraordinário de Projetos Estratégicos do Mato Grosso, José Aparecido da Silva, mais conhecido como Cidinho, essa verba virá do Fundo Constitucional do Centro Oeste (FCO), administrado pelo Banco do Brasil. “Dos 87 aviários a serem reformados, 27 mudarão de lugar e custarão R$ 200 mil cada. Os 60 restantes terão custo médio de R$ 100 mil. E serão construídos 250 novos aviários em Nova Marilândia, Santo Afonso, Arenápolis e Nortelândia, ao custo de R$ 300 mil cada um”.
Oportunidades e riscos do crescimento
Apesar da expectativa de grandes financiamentos via Banco do Brasil, Nova Marilândia não tem sequer uma agência bancária. A rodoviária mais próxima fica em Arenápolis, cujo núcleo urbano está a cerca de 20 quilômetros de distância. O prefeito Juvenal garantiu, porém, que o Banco do Brasil abrirá ainda este ano uma unidade em Nova Marilândia e que até 2010 o município terá sua própria rodoviária. A julgar pela pavimentação em curso na rodovia estadual MT-160, à beira da qual foi construído o frigorífico da Perdigão, e da extensão da rede de distribuição de energia elétrica em alta potência (o “linhão”), ambas em curso, a agência bancária e a rodoviária não parecem sonhos distantes.
O novo frigorífico da Perdigão deve gerar três mil empregos diretos e indiretos, em um município de 2.315 habitantes (dados do IBGE referentes a 2007). Lucinele Amorim, de 19 anos, espera ser uma das beneficiadas: mesmo sem a empresa ter iniciado o processo de contratações, ela foi até o local do empreendimento entregar seu currículo.
Com ensino médio completo e cursos de auxiliar de escritório e Espanhol, a jovem atualmente trabalha em um lava-jato de Arenápolis e ganha R$ 500 por mês, mas não tem registro trabalhista. “Agora estão vindo essas indústrias para cá e a gente vem atrás. O emprego que aparecer está bom, desde que seja carteira assinada”, justificou Lucinele.
A prefeitura local calcula que a população atual seja de cerca de 6 mil pessoas. Os novos moradores ainda não entraram na conta do IBGE e, portanto, não se traduziram em aumento no repasse de verbas do governo federal para gastos com educação e saúde. “Houve uma explosão demográfica de um ano e meio para cá. Desde quando surgiram rumores da construção do frigorífico, o preço dos aluguéis já começou a inflacionar”, revelou o secretário municipal de Agricultura e Meio Ambiente, Rogério Aparecido Raimundo.
Agricultores familiares distantes
Apesar da efervescência de Nova Marilândia, a BioPar Parecis escolheu outro município a 400 km de distância para fazer o investimento em agricultura familiar necessário à obtenção do Selo Combustível Social. De acordo com as regras do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a usina localizada no Centro-Oeste que comprar pelo menos 10% de matéria-prima de agricultores familiares (esse percentual subirá para 15% na próxima safra) tem direito a participar de todos os leilões de biodiesel da ANP e também a receber redução tributária (acesso a alíquotas mais baixas de PIS/Pasep e Cofins).
O Projeto de Assentamento Bogorni, no qual 16 famílias estão produzindo soja com incentivo da usina de Nova Marilândia, está localizado em Ipiranga do Norte (MT), no norte do Estado. “É uma pena que a BioPar não tenha investido na agricultura familiar da região. Eu visitei a usina há seis meses para tentar estabelecer uma parceria, mas não tive sucesso”, reclamou o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Arenápolis, Joselino Francisco da Silva.
De outubro de 2008 a julho de 2009, a BioPar Parecis produziu 5 mil m³ de biodiesel, vendidos exclusivamente no segundo lote dos leilões da ANP, já que para participar do primeiro lote a usina precisaria ter Selo Combustível Social e a BioPar conseguiu obter o seu há apenas dois meses.
“Temos autorização para produzir 30 m³ de biodiesel por dia, mas estamos ampliando nossas estruturas para 100 m³. Em uma usina o investimento é contínuo: você tem que crescer para disputar o mercado ou as grandes te engolem”, afirmou o gerente geral da Biopar Parecis, Celso Lescano Jr. Ele contou que a BioPar foi “construída praticamente com recursos próprios”, com uma economia de cerca de 50% comparado ao investimento convencional em uma unidade com capacidade diária de 30 m³, que “custaria em torno de R$ 10 a R$ 15 milhões”. “Nossa tecnologia de produção foi desenvolvida localmente, com apoio da UFMT [Universidade Federal do Mato Grosso], o que reduziu nosso custo quase pela metade. Ela já funciona bem com óleos vegetais e precisa apenas de um ajuste para produzir com gordura animal”.
Influência política
O uso da gordura de frango para produção de biodiesel em Nova Marilândia, à primeira vista, parece ser apenas um caso exemplar de parceria estratégica entre um grande frigorífico e uma usina. Mas a história tem facetas menos nobres: o proprietário da BioPar Parecis, José Wagner dos Santos, foi um dos indiciados da chamada Operação Sanguessuga, que em 2006 revelou uma rede criminosa especializada na venda de ambulâncias superfaturadas, por meio de fraudes em licitações públicas. Na ocasião, ele foi preso pela Polícia Federal, acusado de ser o principal intermediador do esquema no Mato Grosso, responsável por estabelecer o contato com as prefeituras.
José Wagner foi denunciado pelo Ministério Público Federal por formação de quadrilha e tráfico de influência. O processo, em andamento na Justiça Federal, está na fase das alegações finais, ou seja, o juiz Jeferson Schneider aguarda as últimas manifestações da acusação e da defesa para dar sua sentença.
Cidinho, atual secretário extraordinário de Projetos Estratégicos do Mato Grosso, é irmão de Wagner. Quando ocorreu a Operação Sanguessuga, ele era prefeito reeleito de Nova Marilândia (pelo PFL, hoje DEM) e presidente da Associação Mato-grossense de Municípios (AMM), da qual José Wagner era funcionário.
Além de secretário estadual, Cidinho atualmente é sócio da empresa União Avícola Industrial, que tem contrato com a Perdigão para gerir até 2011 o frigorífico de Nova Marilândia. A mulher dele, Marli Becker dos Santos, é proprietária da empresa Rações GMix, que fornece a alimentação das aves que serão abatidas lá.
Polêmico e empreendedor, Cidinho foi o responsável por introduzir a criação de aves de corte em Nova Marilândia, a partir de 2001. Oito anos antes, aos 22 anos de idade, ele foi o primeiro prefeito do município (oficialmente criado em dezembro de 1991). Até o fim do seu primeiro mandato, em 1996, a mineração de diamantes era a principal atividade econômica local, mas já apresentava sinais de declínio. Ao voltar à prefeitura, em 2001, Cidinho promoveu um processo de reforma agrária municipal e incentivou os assentados a investirem recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) na construção de aviários.
“Comprei terras baratas e distribui lotes de 5 hectares para as famílias desempregadas do garimpo.Os R$ 13,5 mil do Pronaf não eram suficientes para erguer um aviário, mas a prefeitura ajudava com máquinas, gasolina e cestas básicas”, contou ele. Os frangos passaram a ser vendidos para o frigorífico Mary Loise, em Nova Mutum, comprado pela Perdigão em 2004. “De início, a Perdigão não se interessou por nossa produção, que estava associada a assentamentos e, logo, aos sem-terra. Convidei os representantes da empresa a visitarem nossos aviários e eles perceberam que reforma agrária aqui não era coisa de baderneiros”, revelou Cidinho.
Segundo o secretário, a Perdigão voltou a se mostrar hesitante no momento de decidir onde construiria o novo frigorífico. O apoio político do governador teria sido “fundamental” para que a empresa optasse por Nova Marilândia e aceitasse figurar como avalista nos financiamentos para reestruturação e construção de aviários. A aliança política entre Blairo Maggi e Cidinho, aliás, é antiga: em 2002, o então prefeito batizou a principal rua da cidade como “Governador Blairo Maggi”, contrariando a legislação brasileira que proíbe dar nome de pessoas vivas a logradouros públicos.
“Eu acho que homenagem a gente tem que fazer enquanto o homenageado não morreu”, sustentou o secretário. “Eu apoiei o Blairo Maggi no início de 2002, quando ele era pré-candidato ao governo do Estado e aparecia nas pesquisas de intenção de voto com apenas 5% da preferência do eleitorado. Ele prometeu que, caso eleito, ajudaria a avicultura de Nova Marilândia. E está cumprindo”.
Em maio deste ano, a Perdigão e a Sadia assinaram um acordo de associação, que está sob avaliação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Se aprovado, ele dará origem a um gigante empresarial que será o maior produtor e exportador mundial de carnes processadas e a terceira maior empresa brasileira em exportação (atrás apenas da Petrobrás e da Vale).
A Repórter Brasil entrou em contato com a Perdigão para confirmar as informações sobre Nova Marilândia, mas a assessoria de comunicação informou que todos os representantes da empresa , estão “em período de silêncio” devido a uma “oferta primária de ações”. De fato, a Instrução Normativa 400 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), publicada em 2003, restringe a divulgação de informações comerciais estratégicas por parte de empresas que estejam em oferta pública de ações, como é o caso da Perdigão.