A principal estrada que liga Mato Grosso ao Pará está um lamaçal de ponta a ponta da pista e, em alguns trechos, os buracos parecem ser capazes de engolir o pneu de um caminhão. Chove quase continuamente, como é comum nesta época do ano, quando o “inverno” chega à Amazônia. Inverno por aqui não é frio. É chuva. E se estende até julho, o que, para o azar dos produtores rurais, coincide com o período de escoamento da safra de soja do Centro-Oeste, a mais importante do país.
Por esse e outros motivos, a maior parte dos grãos plantados na região não pode ser transportada pela BR-163, que liga Cuiabá a Santarém, e atravessa o país até os portos de Santos (SP) e Paranaguá (PR) para embarque ao exterior, num percurso mais longo, caro e congestionado. Mas algo diferente acontece neste “inverno”. Um número grande de caminhões de Mato Grosso começou a subir a rodovia federal em direção ao Pará – a despeito do risco de derrapagens e atoleiros e do dobro do tempo de viagem que a quilometragem rodada exigiria. Eles carregam soja da americana Bunge.
Em uma decisão inédita, a gigante do agronegócio optou por inverter a partir desta safra a lógica clássica de fluxo para o Sudeste como principal canal de exportação. A justificativa para isso, afirma Pedro Parente, CEO da Bunge no Brasil, é outro marco para a companhia: a inauguração de uma estação fluvial de transbordo de cargas e um terminal portuário na Amazônia, baseados em um ambicioso projeto de escoamento denominado “Terfron” – Terminais Portuários Fronteira Norte.
Com investimento próprio total de R$ 700 milhões – o maior em seis anos no portfólio de agronegócio e logística no Brasil -, a Bunge dará mais fôlego ao que o mercado chama de “matriz amazônica” de transporte. Na prática, isso significa a criação de um dos mais importantes corredores logísticos intermodais do país, formado pela BR-163 e pela hidrovia Tapajós-Amazonas. A alternativa é defendida há muitos anos pelos ruralistas, que veem na rota ganhos de frete, tempo e eficiência de transporte ante as opções atuais.
A múlti americana será a primeira, mas está longe de ser a única na corrida para o Norte. Nos próximos anos, o setor privado ligado ao agronegócio deverá investir cerca de R$ 2,3 bilhões somente em instalações de terminais, comboios de barcaças e empurradores para o transporte no rio Tapajós. Em comum, todos estão de olho no potencial de escoamento fluvial anual de 40 milhões de toneladas de grãos do Centro-Oeste até 2020, com redução de até 34% no custo do frete, segundo o Movimento Pró-Logística de Mato Grosso, formado por dez entidades, entre elas Aprosoja e Acrimat – que representam produtores de grãos e pecuaristas, respectivamente.
“A saída pelo Norte poderá representar 20% em participação de mercado da nossa comercialização de grãos no país”, afirmou Parente. “Nossa expectativa é escoar 2,5 milhões de toneladas de grãos nesta safra e atingir o potencial anual de 4 milhões de toneladas em 2014/15”. Segundo a empresa, esse volume deverá superar 30% quando a BR-163 estiver totalmente pavimentada e o terminal atingir a sua capacidade de projeto.
O mosaico logístico que se desenha com o novo modal prevê a instalação de quase uma dezena de terminais fluviais em Miritituba – distrito do município paraense de Itaituba estrategicamente localizado à beira de um trecho do Tapajós com calado suficiente para a navegação de barcaças e, melhor ainda, sem pedras no caminho. Sete empresas já adquiriram lotes de terra para a instalação de seus terminais (ver infográfico).
De todas, só a Bunge obteve licença de instalação e levantou o seu terminal. Os terrenos ao lado, todos vendidos, estão intactos, em fase de estudo de impacto ambiental ou à espera do sinal verde do governo para a construção. Mas, apesar de tudo pronto, a Bunge também não pode iniciar o escoamento porque não recebeu a licença de operação da Secretaria de Meio Ambiente do Pará, que deverá ser emitida até meados de março. Enquanto isso, a companhia realiza testes pré-operacionais de carregamento e descarregamento, com a soja que já está sendo transportada pela BR-163. As últimas barcaças chegaram há duas semanas.
Ao longo de uma semana, o Valor percorreu grande parte da rota que vai perfazer a matriz amazônica. No mapa, todo grão plantado acima do paralelo 13 – a linha de corte é Lucas do Rio Verde (MT) – seria, em tese, economicamente viável para o escoamento pelo Norte devido à distância menor em relação ao Sudeste. Nesse raciocínio, os caminhões vão pela BR-163, cruzam a fronteira com o Pará e continuam até Campo Verde – o “Km 30”. De lá, seguem à esquerda para Miritituba, onde é realizado o transbordo da carga para as barcaças que descerão o Tapajós até os portos de Santarém e Vila do Conde, em Barcarena (ou, em menor escala, de Santana, no Amapá). Dos portos, são transferidos a navios Panamax para Europa e Ásia.
Em Miritituba, a efervescência dos negócios é quase palpável. Além da Bunge, Cargill, Hidrovias do Brasil (empresa da P2 Brasil, joint venture da Pátria Investimentos e Promon), Cianport (joint venture de Fiagril e Agrosoja), Unirios, Chibatão Navegações e Reicon estão posicionadas em áreas de algumas dezenas de hectares. Mas há muita gente sondando parcerias de serviços ou áreas ainda disponíveis, conforme o Valor testemunhou – da americana ADM à francesa Louis Dreyfus Commodities (LCD), passando pela Multigrain, controlada pela japonesa Mitsui.
Disputa por terrenos para a construção de terminais entre grandes empresas do setor é cada vez mais acirrada
O esgotamento iminente de terrenos, no entanto, já está puxando os investidores rio abaixo. A 15 quilômetros de Miritituba está Santarenzinho, distrito de Rurópolis, outro potencial para a atracação de barcaças. Transportes Bertolini, Amaggi e Cevital, grupo argelino de agronegócio, adquiriram recentemente terrenos aqui. A Odebrecht Transport finaliza negociações na região, no formato de uma joint venture com a Brick Logística, empresa de projetos portuários de Belém.
As expectativas são altas. No trecho mais estreito, o corredor navegável do Tapajós tem dois quilômetros de distância. No mais largo, dez. Diferentemente de estradas, portanto, não há riscos de congestionamentos. Caudaloso, o Tapajós é também um rio “encaixado” (com as margens mais altas) e considerado de fácil navegação. “Trata-se de uma inversão de sentido: em vez de parceria público-privada, é privada-pública. O escoamento pelo Norte só está acontecendo por causa da iniciativa privada”, diz Renato Pavan, diretor da Macrologística, consultoria que trabalha com o planejamento estratégico da Amazônia Legal.
Segundo Clythio Van Buggenhout, diretor nacional de portos da Cargill, o que se vê agora é resultado de um posicionamento das empresas iniciado no começo da década passada. “A aposta do setor foi em cima da perspectiva que havia em investimentos em infraestrutura pública. Todo mundo sabia que, de alguma maneira, seria preciso ter portos no Norte e que eles teriam valor”, disse ao Valor.
O pioneiro no transporte fluvial de grandes volumes na Amazônia, lembra o executivo, foi a Amaggi, que mirou Porto Velho e decidiu pelo escoamento pelo rio Madeira. Depois vieram a Cargill, com o arrendamento em 1997 de um terminal público no porto de Santarém, e a Bunge, que comprou o terreno em Barcarena. Ambas aguardavam o asfaltamento completo da BR-163, que não ocorreu.
O atraso fez a Bunge congelar os planos para o Pará – seu projeto Terfron, além de Miritituba, inclui o terminal em Barcarena e a Unitapajós, joint venture com a Amaggi para o transporte fluvial das cargas. A Cargill optou por escoar a safra do oeste de Mato Grosso pelo terminal da Amaggi no rio Madeira – 2,5 milhões de toneladas de grãos chegam a Santarém hoje.
Agora, a abertura da navegação pelo Tapajós reacendeu os planos da saída pelo Norte. Além de Miritituba, o setor está de olho nas licitações para novos terminais portuários de grãos que o governo federal pretende fazer no Pará para dar vazão ao volume descarregado pelas barcaças – um em Santarém (onde só a Cargill opera hoje), outro em Vila do Conde (onde a Bunge já tem terminal e a ADM e a Hidrovias do Brasil contam com terrenos) e três em Outeiro. Cada terminal elevaria em 5 milhões de toneladas a capacidade de escoamento de grãos pelo Estado.
A expectativa da Companhia Docas do Pará (CDP) é que as licitações, cujos editais estão em análise no Tribunal de Contas da União, ocorram este semestre. Socorro Pirâmides, diretora de gestão da CDP, diz que também poderá haver uma licitação para um terminal de fertilizantes em Santarém.
Van Buggenhout, da Cargill, diz que pretende participar da licitação em Vila do Conde e dobrar a capacidade operacional em Santarém até o fim de 2015, para 5,5 milhões de toneladas/ano. A empresa aportou US$ 90 milhões na ampliação do terminal e US$ 70 milhões estão previstos para Miritituba.
Assim como a Bunge, a Cargill começou a subir soja pela BR-163 este ano, após experiências “bem-sucedidas” com o milho em 2012 e 2013, em períodos secos. “Em função da sobrecarga logística e fatores climáticos internacionais, começou a ficar viável subir a BR-163”, diz Van Buggenhout. “Bem ou mal há um fluxo regular subindo a estrada. Para o caminhoneiro, é melhor que ficar 60 horas na fila de transbordo ferroviário”.