Henrique Meirelles e Luciano Coutinho são os dois principais atores da bem-sucedida gestão econômica do governo Lula. Meirelles, no comando do Banco Central (BC), ajudou o País a sair de duas crises – a de 2002/2003 e a de 2008. Presidente do BNDES, Luciano Coutinho é o principal formulador, ao lado do economista Nelson Barbosa, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, das políticas de desenvolvimento que marcam o segundo mandato do presidente Lula. Meirelles, um economista ortodoxo, e Coutinho, um desenvolvimentista, têm visões distintas sobre os desafios do Brasil nos próximos anos.
Esta coluna tratou com os dois do assunto que mais paixão tem provocado no debate econômico neste momento – a (suposta) apreciação da taxa de câmbio. As respostas de ambos são, evidentemente, distintas, mas vão além da mera afirmação ou negação do regime cambial vigente no País. O que fica claro é que o tema vai dominar as discussões daqui em diante, especialmente, no primeiro ano do governo eleito em 2010.
Uma boa parcela dos analistas concorda que a apreciação da taxa de câmbio é hoje uma tendência estrutural da economia brasileira. A caminho de se tornar um País normal e com potencial para crescer de forma acelerada, o Brasil entrou definitivamente no radar dos investidores internacionais. Os investimentos previstos no pré-sal acentuam a possibilidade de ingressos permanentes e vultosos de dólares, ajudando a valorizar ainda mais o real. Alguns economistas acreditam que isso pode provocar a desindustrialização do País.
Meirelles rejeita, de forma peremptória, essa tese. Ele lembra que, entre 2006 e 2008, o Brasil cresceu de forma acelerada, liderado pelos investimentos, em meio a um processo de apreciação cambial – em parte, diz ele, provocado pelos próprios exportadores, que fizeram apostas especulativas com derivativos cambiais. “O que vimos, quando se falava desse risco, foi um crescimento agressivo e a modernização da indústria a partir do fortalecimento do mercado doméstico, que é o que dá escala para crescimento de qualquer base industrial. Aumentando-se a escala, diminuem-se os custos de investimento em tecnologia”, argumenta o presidente do BC.
De fato, e essa é uma tendência histórica, as empresas aproveitam os momentos de apreciação cambial para obter ganhos de capital – as importações barateiam e, assim, as companhias compram máquinas e equipamentos mais modernos no exterior.
Meirelles vê, nas críticas ao regime de câmbio flutuante, comparações indevidas do Brasil com economias menores e exportadoras de produtos básicos. “Não vejo possibilidade de o Brasil ter uma economia equivalente à de países de população pequena e grandes produtores de commodities. O Brasil tem uma economia complexa, grande, com uma classe média crescente, equivalente hoje a 53% da população, que a longo prazo será muito maior e com poder de compra”, pondera.
O presidente do BC sustenta que não há alternativa viável ao câmbio flutuante. Os países que tentaram controlar a taxa nominal de câmbio, via intervenções não esterilizadas no mercado, assistiram ao aumento da inflação e à apreciação do câmbio real. “O pior dos cenários”, assinala ele. O País perde competitividade e ao mesmo tempo produtividade pela desorganização macroeconômica interna. O único país que tem um modelo de câmbio diferente – e bem-sucedido – é a China porque, lembra Meirelles, é ancorado numa taxa de poupança interna de 51% do PIB e numa política de acumulação de reservas financiada por poupança nacional e pública. “Um caso único no mundo e, portanto, irreplicável”, afiança Meirelles.
Luciano Coutinho, mesmo sendo um velho crítico da política monetária do BC, acha que o tripé câmbio flutuante-metas para inflação-superávit primário teve êxito no processo de estabilização da economia e de redução da taxa de juros. Ele teme, no entanto, a trajetória crescente de valorização do real. “Isso tornará muito difícil o avanço em áreas de manufatura e de serviços de alta intensidade tecnológica que já enfrentam no cenário global acirrada competição”, adverte.
O presidente do BNDES diz que não é sensato retomar os instrumentos de proteção da economia que, na sua avaliação, foram eficientes no passado. Isso torna ainda mais desafiador desenvolver uma estrutura competitiva nas áreas mencionadas.
“Esta é talvez a minha maior preocupação. Vínhamos num processo de crescimento e de fomento ao desenvolvimento tecnológico, à recriação de empresas de base tecnológica no País, mas a crise nos obrigou a um natural freio. Agora, temos que retomar a agenda, fazer com que, a partir das novas oportunidades, inclusive no pré-sal, o Brasil desenvolva segmentos de nichos em engenharia sofisticada, materiais, bens de capital, automação, softwares e serviços associados a complexos de petróleo e gás off-shore, mas não só nessas áreas”, defende ele, mencionando ainda os setores do agronegócio, da indústria automotiva (“os chineses estão aí batendo na porta”), de equipamentos e serviços de telecomunicação e do complexo saúde.
“A economia brasileira tem escopo e potencial suficientemente grande para aspirar desenvolver-se tecnologicamente. Este é um processo de criar empresas, desenvolver talentos, algo que exige regularidade e continuidade. A agenda da inovação é a mais significativa para o futuro do País”, diz Coutinho, considerado por muitos uma espécie de guru da ministra Dilma Rousseff – foi seu professor na Unicamp.
O presidente do BNDES alega que o câmbio apreciado torna a realização dessa agenda muito mais difícil e que, por essa razão, quanto maior for a apreciação cambial, mais potentes terão que ser os instrumentos de suporte aos setores potencialmente competitivos. “O que eu não me conformo, e acho que o Brasil não deve se conformar, é de abdicar antecipadamente de desenvolver o pleno potencial tecnológico do País por causa disso (do câmbio)”, afirma Coutinho.
-Cristiano Romero, repórter especial do Valor Econômico.