Redação AI 03/05/2005 – Para os epidemiologistas do leste da Ásia, abril foi um mês cruel. No dia 6, a epidemia de gripe que atacou milhões das aves na região fez sua 50a. vítima humana, uma menina no Vietnã. A morte ocorreu dias depois que as autoridades deflagraram uma enorme campanha para desinfetar cada granja de aves e gaiola de pássaros no país, num esforço para erradicar a doença. Ao mesmo tempo, surgiram notícias de que o vírus denominado H5N1 também está matando frangos na Coréia do Norte.
A gripe aviária continua se alastrando, a despeito das frenéticas medidas tomadas desde que o atual surto teve início no fim de 2003. E ao alastrar-se, crescem também os temores de que venha a gerar uma epidemia humana. Esse receio em nada foi atenuado, mês passado, diante das notícias de que uma faculdade americana despachara inadvertidamente milhares de amostras de um vírus letal de gripe humana para inúmeros laboratórios do mundo.
Antes desses surtos mais recentes, acreditava-se que a gripe aviária fosse rara em aves domésticas e julgava-se improvável que pudesse disseminar-se de um país para outro. Hoje, porém, a gripe das aves já afetou 11 países – do Japão à Indonésia -, e causou a morte ou a eliminação de mais de 120 milhões de aves no continente asiático. Essa epidemia não tem precedentes. Nunca, antes, frangos em tantos países foram afetados por uma variante letal de gripe aviária.
Um surto anterior da doença atingiu Hong Kong em 1997. A epidemia foi rapidamente liqüidada quando as autoridades exterminaram todo o plantel de 1,5 milhão de frangos da região. Desta vez, a variante letal atacou países muito mais pobres, como a Indonésia e o Vietnã, que não dispõem de capacidade burocrática para detectar e reagir tão rapidamente. Algumas autoridades podem ter agravado a situação, ao tentar encobrir a epidemia com a finalidade de proteger as exportações de frango de seus países. Quando os governos recorreram ao sacrifício das aves, a doença já estava disseminada.
Chaturon Chaisang, ministro tailandês encarregado do combate à epidemia, diz que o problema persistirá durante algum tempo na Ásia. Milhões de agricultores pobres em todo o Leste Asiático criam algum tipo de ave em seus campos ou quintais para complementar suas magras dietas e escassas rendas. Na província de Sa Kaeo, na Tailândia, por exemplo, duas em cada três famílias criam galinhas. Ao contrário da avicultura comercial, em que as aves são mantidas em isolamento, essas galinhas e patos vivem soltos – e contraem a gripe aviária.
Para os governos, está sendo quase impossível monitorar, que dirá isolar, tantas fontes de infecção. Ainda em abril, autoridades vietnamitas souberam de um surto em sua província a partir de uma notícia de jornal. No ano passado, a Tailândia mobilizou 600 mil voluntários para tentar localizar cada novo caso surgido, mas não teve êxito. Até hoje, muitas pessoas em áreas rurais no Camboja sequer ouviram falar de gripe aviária.
Além disso, está ficando mais difícil detectar o vírus. Inicialmente, quase todas as aves domésticas que contraíam a gripe aviária logo ficavam doentes e morriam em um ou dois dias. Só aves selvagens portavam o vírus sem ficar doentes, e assim disseminavam a doença em novas áreas. Agora, porém, alguns patos domésticos desenvolveram resistência à doença. Apenas testes de laboratório podem mostrar se essas aves constituem uma ameaça a outras aves ou àqueles que as criam. O pior é que esses animais podem também estar excretando o vírus letal em suas fezes, o que poderia explicar como alguns humanos contraíram a doença sem qualquer contato aparente com as aves.
A melhor maneira de prevenir uma epidemia humana, evidentemente, é pôr fim à epidemia aviária. Em vista das dificuldades para isolar os surtos, alguns países recorreram à vacinação das aves. Mas a vacina disponível não impede que o frango contraia a doença; ela apenas abranda seus sintomas. Além disso, a União Européia (UE), por exemplo, proíbe a importação das aves de países que empregam vacinas por até um ano após sua vacinação. A Tailândia, quarto maior exportador mundial de aves antes do surgimento da gripe aviária, seria relutante em abandonar toda esperança de retomar suas exportações.
Em resumo, o vírus H5N1 da gripe aviária tornou-se endêmico. E para que uma eventual epidemia humana – que poderia muito facilmente transformar-se numa pandemia, – possa ser descartada, esse “reservatório” da doença precisaria ser erradicado. Klaus Stohr, que dirige o programa mundial de combate à gripe na Organização Mundial de Saúde (OMS), diz que muito poucas pessoas acreditam que a gripe aviária possa ser controlada na Ásia nos próximos anos. As perspectivas para sua eliminação, conclui ele, são pessimistas.
O H5N1 tira o sono de muitos epidemiologistas porque chega perto de preencher três condições necessárias para gerar uma pandemia de gripe humana. As condições são: a emergência de um novo vírus frente ao qual os humanos tenham nenhuma ou pequena imunidade (condição satisfeita); o novo vírus precisa ser capaz de replicar-se em seres humanos e causar doenças graves (condição também satisfeita); e o vírus precisa ser transmitido com eficiência de um ser humano para outro (condição ainda não satisfeita).
A real preocupação é que um reservatório animal consolidado de gripe aviária esteja proporcionando ao vírus muitas oportunidades de infectar seres humanos. Se o vírus infectar um humano que seja também hospedeiro de um vírus de gripe humana, os dois vírus poderão “se reorganizar”, na vítima, reprogramando seus genes e assim criando uma nova variante.
Temor da OMS é de que disseminação do vírus H5N1 possa levar a uma pandemia matando até 7,4 milhões de pessoas |
Potencialmente, uma nova variante desse tipo poderia suprir a terceira condição necessária, combinando a letalidade do vírus da gripe aviária com a capacidade de ágil disseminação entre humanos favorecida pelo vírus da gripe humana. Quanto maior a persistência do vírus H5N1 entre nós, maior a probabilidade de que isso venha a acontecer. Outra possibilidade é que, à medida que o vírus disseminar-se entre as aves, ele gradualmente evolua para algo que os humanos “peguem” com maior facilidade. Estudos realizados até agora evidenciaram que o vírus H5N1 tornou-se progressivamente mais infeccioso em aves domésticas, e que está ampliando seu leque de hospedeiros. E em outubro passado o vírus infectou 147 tigres num zoológico nas proximidades de Bangcoc (os animais foram contaminados depois de serem alimentados com carcaças de frango).
Entretanto, o fato de uma pandemia humana ainda não ter surgido de terreno tão fértil é um dado também importante. Até agora, o vírus não parece infectar facilmente seres humanos. Entre os vários milhares de agricultores que entraram em contato com aves infectadas, foram detectados menos de 100 casos. Além disso, muito poucos desses agricultores, ou mesmo nenhum deles, pegaram a doença de outras pessoas, mas sim de aves. Por outro lado, a gripe aviária é letal em humanos. Aproximadamente dois em cada três humanos infectados morreram.
Os cientistas referem-se a “quando”, e não “se”, ocorrerá uma pandemia de gripe humana. Não é possível prever se surgirá uma pandemia da gripe aviária H5N1, ou se ela será extremamente letal. Acredita-se, porém, que os vírus causador das três maiores pandemias de gripe no século passado tenham se originado, ao menos parcialmente, de cepas de influenza aviária. A pior dessas epidemias, no período imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, chegou a infectar até uma em cada quatro pessoas na população mundial – e custou a vida de mais de 40 milhões de pessoas.
Os modelos da Organização Mundial de Saúde sugerem que, na melhor das hipóteses, uma pandemia provocada pelo vírus H5N1 mataria entre 2 milhões e 7,4 milhões de pessoas. Mas haveria também 1,2 bilhão de pessoas enfermas e 28 milhões hospitalizadas. Se o leitor acha isso grave, leve em conta que estimativas mais desalentadoras projetam o número de mortos em até 60 milhões de pessoas. Essas estimativas variam, evidentemente, conforme as premissas assumidas sobre a letalidade intrínseca do vírus – algo que ninguém é capaz de prever.
O impacto econômico seria enorme. Uma estimativa sugere que a crise na Ásia gerou mais de US$ 10 bilhões em prejuízos às economias dos países mais afetados. Esse valor seria insignificante no caso de uma pandemia humana.
Em muitas regiões do mundo, os governos já estão discutindo como poderiam reagir a tais ameaças. Uma possibilidade é empregar medicações antivirais para tratar pessoas que venham a adoecer. Isso reduziria os sintomas e a taxa de mortalidade. Doze países já confirmaram pedidos visando a formação de estoques de oseltamivir (Tamiflu), uma nova droga antiviral, e outros 12 países estão em negociações para adquiri-la. Mas o medicamento é caro, por isso poucos países terão condições de arcar com seu custo para atender uma pequena parcela de suas populações.
O custo elevado do medicamento já fez com que a Tailândia considerasse a possibilidade de produzir seus próprios estoques, coberta por uma legislação emergencial de licenciamento, em caso de uma emergência sanitária. De qualquer forma, ao ritmo atual de produção, serão precisos vários anos para que o laboratório Roche, fabricante do medicamento, possa atender a toda essa demanda. Até mesmo países ricos terão de aguardar para que seus pedidos sejam atendidos.
Embora antivirais possam ter um papel na forma de tratamento em países com condições de arcar com seu custo, vacinas preventivas são amplamente consideradas como a mais útil intervenção para enfrentar uma pandemia de gripe.
Vários países estão atualmente trabalhando no desenvolvimento de uma vacina contra a gripe aviária, e testes com uma vacina contra o vírus H5N1 tiveram início neste mês nos Estados Unidos.
Entretanto, o desenvolvimento de vacinas leva tempo, e há escassez de capacidade de produção. Toda capacidade disponível está concentrada na Austrália, Europa, Japão e América do Norte. Quando uma pandemia mundial começa, afirma um recente relatório da OMS, a expectativa é de que os países que fabricam medicamentos contra a doença reservem os produtos para seus próprios cidadãos antes de exportar para atender necessidades de outros países.
A expectativa é de que durante uma pandemia os sistemas de saúde pública de todos os países fiquem sobrecarregados. Isso imporá limites à eficácia de assistência humanitária internacional emergencial. Vacinas contra o vírus H5N1 poderiam ser estocadas, embora para isso sejam necessários tempo e dinheiro, e não há certeza de que a vacina funcione contra o que surgir. Além disso, a gripe aviária poderá não ser, absolutamente, o início de uma pandemia humana. Para os países pobres, isso significa fazer algumas escolhas muito difíceis. Como demonstrou, tragicamente, o tsunami na Ásia no fim do ano passado, é sempre difícil eleger uma prioridade entre alternativas de investimentos para enfrentar eventos imprevisíveis – até mesmo contra fenômenos possivelmente catastróficos.