Redação (03/06/2008) – O representante regional para a América Latina e o Caribe e subdiretor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação), José Graziano da Silva, acredita que a crise mundial de alimentos não atingirá o Brasil e a maioria dos países latino-americanos.
Como ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, Graziano foi o responsável pela implementação do programa Fome Zero.
Em entrevista à BBC Brasil, ele disse que a América Latina produz 40% a mais de alimentos do que seria necessário para alimentar toda a sua população.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil – A crise mundial de alimentos pode afetar o Brasil e a América Latina? Há riscos de falta de alimentos?
Graziano – Não existem riscos para o Brasil e a maioria dos países latino-americanos. Há uma elevação de preços na região. Mas a região é auto-sustentável na produção de alimentos e é superavitária. A América Latina produz em média 40% mais alimentos do que seria necessário para alimentar toda a sua população.
A América Latina tem um nível incompatível de pobreza com o de riqueza que ela gera. Há pouco, a Cepal revisou seus cálculos mostrando que cerca de 15 milhões de pessoas podem voltar ao nível de pobreza extrema na América Latina em função dessa alta de preços. Isso significa que nós perderíamos praticamente tudo o que conquistamos em relação a atingir a meta do milênio de reduzir à metade os pobres na região.
BBC Brasil – Como o Brasil, sendo uma potência agrícola, pode ajudar a superar a crise mundial de alimentos?
Graziano – O Brasil contribui com a oferta de produtos a preços competitivos e sem a necessidade de subsídios. O país também pode vir a ser no curto prazo um exportador de álcool combustível.
Há um outro papel que o Brasil tem e muitas vezes é minimizado: o país é um celeiro de boas práticas de políticas agrícolas, que o tornaram relativamente imune a essa crise. Entre as principais, está um forte apoio à agricultura familiar, que garantiu uma produção interna de alimentos, inclusive de alguns típicos consumidos no país, como o feijão e outros do tipo do leite e alguns exportados, como a soja.
O Brasil também tem um programa muito importante de estoques públicos mantidos por uma empresa pública que não está sujeita à especulação privada. É também uma fonte potencial de tecnologia da melhor qualidade através da Embrapa, que pode ser exportada não só aos países vizinhos da América Latina, mas também para a África.
BBC Brasil – No Brasil, o governo afirma que o etanol feito da cana-de-açúcar não compete com a produção de alimentos. Mas, nos Estados Unidos, a forte demanda por etanol de milho comprometeu terras usadas em outros cultivos e a própria produção. O senhor acredita que a crítica ao etanol não seria injusta, ao culpar o biocombustível, de maneira geral, pelo caminho adotado nos Estados Unidos?
Graziano – As autoridades brasileiras, desde o presidente Lula, o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, e o ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, têm enfaticamente afirmado que o Brasil não se enquadra no problema da competição entre produção de combustíveis e de alimentos.
Quando se fala de biocombustíveis, há de se especificar a origem, qual é o produto utilizado. Hoje, a incidência dos biocombustíveis sobre os alimentos é fundamentalmente originária do impacto sobre o milho americano, cuja demanda cresceu quase 30%, e os óleos vegetais dos biocombustíveis produzidos na União Européia.
Esses são os dois impactos visíveis. Ainda assim são pequenos. Não têm a magnitude que se apregoa. Não podem ser arrolados entre os maiores causadores da atual crise.
BBC Brasil – No caso do etanol brasileiro, o maior impacto seria mesmo social?
Graziano – O Brasil tem uma história de muitos erros na sua trajetória da produção de álcool. Mas a história de sucesso brasileira não deixa de ter um impacto forte na área social que são os bóias-frias. Sempre digo que os bóias-frias são a chaga exposta do processo brasileiro bem-sucedido de produção de álcool. Está ao alcance dos produtores de álcool brasileiro resolver esse problema.
Eu acredito que é preciso uma melhor coordenação público-privada para se lograr um impacto que permita elevar substancialmente o nível de salários e garantir uma melhor estabilidade da renda, do emprego desse segmento, que hoje é um segmento importante, com cerca de 500 mil pessoas. Mas com o processo de mecanização tende a ser reduzido rapidamente.
BBC Brasil – O governo brasileiro está fazendo tudo o que a FAO recomenda nessa área?
Graziano – A FAO tem uma recomendação de muita cautela no caso específico da produção de biocombustíveis: que isso não seja feito com o custo da segurança alimentar. O Brasil tem um programa com a preocupação da segurança alimentar muito bem-sucedido, o Fome Zero, que está sendo implantado desde o governo Lula.
Não vejo nenhuma ameaça nesse momento de crise de abastecimento no Brasil, mesmo daqueles produtos que tiveram elevação de preços. Do ponto de vista de segurança alimentar não há nada a temer.
Mas deve haver um avanço em tudo o que diz respeito a questão do emprego desejável, do emprego seguro e da estabilidade de emprego para os trabalhadores rurais brasileiros.
BBC Brasil – Que decisões ou recomendações devem sair da conferência sobre segurança alimentar?
Graziano – Nós esperamos que essa conferência cause um grande impacto global que possa levar a agricultura a ter a prioridade que ela necessita.
Nós acreditávamos que, devido ao sucesso da revolução verde nos anos 70 e 80, o problema da produção de alimentos em grande escala no mundo estava resolvido. De fato está na grande maioria dos países.
Mas há vários países que se tornaram muito dependentes das importações baratas dos produtos subsidiados exportados pelos Estados Unidos e pela Comunidade Européia, particularmente as nações mais pobres da África e da Ásia e da América Latina.
Nós esperamos que a Cúpula de Roma chegue a um entendimento de que esse processo não pode continuar. A agricultura necessita de mais investimentos, de voltar a ter uma função como prioridade política dos países para ajudar a garantir a segurança alimentar, principalmente dos países mais pobres.