Uma campanha desenvolvida pelas federações de pecuaristas de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás tenta convencer os produtores de carne dos três Estados a abandonar o “fiado” e só vender bois à vista. De acordo com as entidades, embora a venda a prazo seja uma prática comum, os calotes de frigoríficos ameaçam a sobrevivência econômica dos produtores.
Afetados pela crise financeira internacional, que derrubou as exportações e restringiu o crédito, pelo menos 46 frigoríficos pertencentes a grandes empresas do setor encontram-se em situação de recuperação judicial, segundo a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec). Na recuperação judicial, a empresa apresenta um plano à Justiça e, durante o período de reorganização, o pagamento das dívidas fica suspenso.
A estimativa das federações de agricultura e pecuária de Mato Grosso (Famato), Mato Grosso do Sul (Famasul) e Goiás (Faeg) é que a inadimplência atinge 1.554 produtores dos três Estados, credores de uma soma total calculada pelas entidades em R$ 194 milhões.
Para a campanha, foi criada uma cartilha que sugere aos pecuaristas estratégias de negociação que viabilizem a compra à vista e deem mais segurança para o negócio, já que as entregas aos frigoríficos muitas vezes são feitas antes de formalizada a transação.
Desde junho, comitivas de representantes das federações visitam fazendas e sindicatos rurais dos municípios. Segundo a Associação Brasileira dos Frigoríficos (Abrafrigo), depois da campanha, as vendas à vista já representam cerca de 30% das vendas totais – antes, quase 100% eram a prazo.
A campanha surgiu depois que começaram a se intensificar as reclamações de pecuaristas às federações. De acordo com as entidades, a venda com 30 dias de prazo para pagamento tinha a preferência dos pecuaristas porque garantia um acréscimo de cerca de 4% no preço final.
“Isso [a inadimplência] leva a uma preocupação muito grande, porque nesse mercado o produtor muitas vezes vende em um único negócio o gado de um ano inteiro e, de repente, se vê em estado de insolvência. Alguns chegam a praticamente falir”, afirma o presidente da Faeg, José Mário Schreiner.
Dificuldades financeiras – “Eu descobri que não ia receber antes de chegar o dia do vencimento do prazo. Uns 15 dias após eles abaterem os meus bois, meu irmão abriu o jornal e viu que o frigorífico estava em concordata. Fiquei apavorado”, relata Sandro Jaime Belo, criador de gado em São Francisco de Goiás (GO). Ele espera receber mais de R$ 158 mil pelos 180 bois que vendeu ao frigorífico Independência em fevereiro.
Como planejava usar o dinheiro para quitar dívidas imediatas, como pagamentos de funcionários e despesas com os cinco filhos, ele recorreu a uma solução alternativa: descontar em um banco a Nota Promissória Rural, título que representa crédito concedido ao frigorífico por uma instituição financeira, mas que precisa ser endossado pelo próprio pecuarista. Em caso de inadimplência da empresa, ele se responsabiliza pela dívida.
“Fui ao banco e eles disseram que não recebiam mais NPR desse frigorífico. Sem o crédito, o que a gente pode fazer? Pedi dinheiro emprestado a um amigo”, diz Belo. Procurado pelo G1, o frigorífico Independência informou que não irá se pronunciar sobre o assunto.
Marcos da Rosa, presidente da Comissão de Produtores Credores de Frigoríficos em Recuperação Judicial da Famato e produtor em Camarana, no interior de Mato Grosso, havia vendido R$ 478 mil a dois frigoríficos diferentes quando descobriu que as duas unidades entraram em recuperação judicial.
“Me senti desamparado. Eu tinha crédito nos bancos, utilizei de todos os créditos, vendi mais gado e consegui empurrar minhas dívidas para um ano depois, na esperança de receber”, diz.
Para conviver com o desfalque no caixa, Rosa mudou hábitos. “Meu nível de vida diminuiu muito: cortei mercado, levei um dos filhos para a escola publica, tirei todos do [curso de] inglês, tinha quatro funcionários e deixei só um. Além disso, não se investe em mais nada na fazenda: se está quebrado, remenda-se”, diz.
Negócios na cartilha – Segundo o presidente da Famato, Rui Carlos Ottoni Prado, a ideia de fazer negócios à vista e só transportar os bois para o abate depois que o dinheiro estiver depositado em conta tem sido bem recebida pelos pecuaristas.
“Nós pecuaristas, além de fornecermos a matéria-prima, dávamos prazo para o frigorífico fazer esse pagamento. O pecuarista estava atuando como fornecedor de matéria-prima e de capital de giro. Acreditamos que é a figura do banco que deve prestar esse papel de emprestar dinheiro”, afirma.
Para Prado, o mais difícil da campanha é convencer produtores tradicionais a antecipar a formalização das negociações. “Muitas vezes, o produtor só tem um papelzinho anotado do caminhão de carregamento para comprovar o negócio”, diz.
Frigoríficos – A mudança de atitude adotada pelos pecuaristas é considerada “normal” pela entidade que representa os frigoríficos, a Associação Brasileira dos Frigoríficos (Abrafrigo).
De acordo com o presidente da associação, Péricles Pessoa Salazar, já se nota um aumento nas negociações à vista, que antes eram pouco representativas e hoje, segundo ele, chegam a 30% do total. “Já foi bem menos”.
“Muitos pecuaristas tiveram prejuízo, e o medo se alastrou para esse mercado, que é baseado na confiança. Considero absolutamente normal a reação dos produtores ao começar essa campanha”, diz.
Para ele, a crise que abateu os frigoríficos já começa a ser superada. “A tempestade já passou, mas ainda enfrentamos falta de matéria-prima por causa da desvalorização dos preços. Mas, à medida que o tempo vai passando e o mercado vai se ajustando, a confiança (entre produtor e frigorífico) será restabelecida. Isso é mercado”.