A retomada das economias locais, a desvalorização do real e a possibilidade de brechas nas cadeias globais têm ajudado as exportações brasileiras a ganhar terreno nos países latino-americanos em 2021, sobretudo pela venda de bens duráveis e de capital, como veículos e máquinas. Pode ser um movimento importante para a manufatura nacional, que perdeu espaço nos últimos anos com as vendas chinesas à região, mas o cenário ainda é de muitos desafios para que se possa pensar em uma recuperação estrutural desses mercados, dizem especialistas.
No geral, os embarques brasileiros aos pares latino-americanos cresceram no primeiro semestre deste ano mais pelo aumento do volume comercializado do que pela alta nos preços, diferentemente do que é observado nas exportações como um todo. De janeiro a junho de 2021, o volume exportado pelo Brasil cresceu 6,6%, ante igual período de 2020, enquanto os preços avançaram 25,2%.
Entre os latino-americanos, porém, o crescimento do volume exportado foi de 42,4% para a Argentina (com alta de 7,1% nos preços) e de 36% para outros países da América do Sul (7,9% nos preços). Ao México, o volume avançou 18,5%, e os preços, 17,9%. Enquanto isso, para os Estados Unidos e a União Europeia, o crescimento em volume foi menor, de 15,4% e 4,9%, pela ordem. Para a China, houve até pequena queda (2,6%), e o ganho de participação do país, para 34,4% das exportações brasileiras no período, é explicado mais pela alta de quase 39% nos preços. Os dados são do Indicador de Comércio Exterior (Icomex), do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre).
Argentina (3º), Chile (6º) e México (10º) são os países da América Latina entre os dez principais destinos dos embarques brasileiros em 2021, em valores, segundo dados do governo federal. Eles estão também entre as dez nações com as maiores variações absolutas nas exportações do primeiro semestre de 2020 para 2021. As vendas à Argentina aumentaram US$ 1,9 bilhão, para US$ 5,6 bilhões, atrás apenas de China (US$ 46,8 bilhões) e EUA (US$ 13,3 bilhões), que são os dois países com maior crescimento interanual absoluto. As exportações ao Chile ganharam US$ 1 bilhão, somando US$ 2,7 bilhões, e o México avançou US$ 708 milhões, para US$ 2,4 bilhões.
A maior presença dos latino-americanos na pauta exportadora brasileira em 2021 está relacionada ao crescimento das vendas externas da indústria de transformação, já que esses países são mercados tradicionais para o segmento. “Claro que agricultura e indústria extrativa são o consenso, mas, neste ano, há, realmente, avanço nas exportações da indústria da transformação”, diz Lia Valls, pesquisadora associada do FGV Ibre e responsável pelo Icomex.
Entre os primeiros semestres de 2020 e 2021, a exportação na indústria de transformação cresceu 10,4% em volume e 10,9% nos preços, aponta o Icomex. Como comparação, os volumes das vendas externas na agropecuária e na indústria extrativa subiram 1% e 8%, pela ordem, mas os preços saltaram 21,7% e 62,5%, respectivamente.
Parte do ânimo exportador da indústria local vem do câmbio, que deixou o produto nacional mais competitivo. “Desde 2020, vimos uma forte desvalorização e sabemos que, em bens industriais, os efeitos não são automáticos, leva um tempo para sentir”, diz Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi).
O câmbio pode ajudar bastante, mas Lia lembra que muitos desses pares latinos que compram do Brasil são, na outra ponta, exportadores agrícolas e também têm se beneficiado do aumento das receitas com a venda de commodities, o que ajuda a bancar importações. Além disso, a economia em certos países se recupera acompanhada de avanços na vacinação e melhora da pandemia, o que sustenta a demanda. “Mesmo a piora que houve no início de 2021 não trouxe, do ponto de vista econômico, as mesmas incertezas do ano passado”, afirma Cagnin.
Livio Ribeiro, pesquisador associado do FGV Ibre e sócio da BRCG, pondera que, na comparação interanual e entre países, existem os fatores da baixa base de comparação e do “timing” da pandemia pelo mundo. “A nossa crise latino-americana foi, talvez, mais profunda. Com a retomada – da forma que for, com controle sanitário ou não -, faz sentido que a variação interanual seja maior onde os choques também foram maiores no ano passado. Não é uma surpresa que a América Latina apareça, nessa comparação, de maneira relevante”, afirma ele.
Especialistas levantam ainda a hipótese de que, com a desorganização das cadeias globais por causa da covid-19, o Brasil poderia estar atuando de forma a complementar uma oferta que não chega à América Latina pelos caminhos convencionais.
Por categorias de uso, as exportações são impulsionadas por bens de consumo duráveis, principalmente do setor automotivo, e de capital. Levantamento da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) para o Valor mostra que as exportações do ramo à América Latina cresceram, em valores, 48% no primeiro semestre deste ano, ante 2020, que foi um ano atípico. Mas, mesmo em relação a 2019, houve alta de 12,7%. “Os números sinalizam, sim, uma recuperação das exportações do setor para a América Latina, mas ainda não conseguimos dizer se fecharemos melhor do que o pré-pandemia e, provavelmente, não chegaremos ao melhor momento de 2017”, diz Patrícia Gomes, diretoria executiva de mercado externo da Abimaq.
Em relação ao segmento automotivo, Lia lembra que a cadeia passou parte de 2020 parada e foi muito prejudicada pela crise sanitária. Somados, Argentina, Chile, Colômbia, Peru, México, Uruguai e Paraguai representavam 93,6% das exportações brasileiras do setor no primeiro semestre de 2021, vindo de 82,2% em 2020, segundo dados compilados pelo FGV Ibre. “Acho que o crescimento reflete mais essa retomada do que qualquer outra coisa, embora o setor também enfrente problemas com falta de componentes”, diz Lia, acrescentando que o distanciamento social pode ter impulsionado a demanda por transporte individual.
Ainda que a reativação de mercados latino-americanos possa ser importante para a manufatura nacional, os especialistas reforçam que não há sinais de mudança estrutural. “O grau de dependência das commodities e da China aumentou”, afirma Lia, lembrando que a América do Sul, por exemplo, já teve participação mais importante na pauta brasileira.
Juntos, os principais destinos dos embarques do Brasil na América Latina (Argentina, Chile, México, Colômbia, Paraguai, Peru, Uruguai e Bolívia) somavam US$ 16,6 bilhões em exportações (12% do total) no primeiro semestre de 2021, segundo dados do governo brasileiro. É um avanço em relação à participação de 11% em 2020, mas abaixo dos 15% de 2019. “Voltar ao que era no passado acho difícil, porque a gente concorre com chineses agora”, diz Lia. “Não há preço competitivo, produtividade, financiamento. Temos dificuldade de concorrer”, afirma José Augusto de Castro, presidente executivo da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB).
E, mesmo no curto prazo, pairam dúvidas, por exemplo, sobre como a demanda entre os países latino-americanos pode evoluir considerando a propagação da variante delta do coronavírus pelo mundo e da lambda na região andina, observa Ribeiro. “Tem que ver se isso vai forçar novas rodadas de isolamento social, de que forma a questão sanitária pode embaralhar a discussão de retomada mais sólida das economias.”