Em fins de semana, é preciso pegar senha para ser atendido na Sommier Center, uma grande loja de colchões na Santa Fé, enorme avenida que cruza Buenos Aires. Difícil saber se o consumidor compra colchões para livrar-se dos pesos, que a cada dia perdem valor, ou para renovar seu pitoresco esconderijo de dólares.
Acumular notas da moeda americana debaixo do colchão ou em outra parte da casa está longe de sair de moda na Argentina. Mas o consumo, principalmente de bens duráveis, acabou por se transformar também numa espécie de proteção contra a perda do poder de compra. Analistas alertam, no entanto, que a proximidade de uma recessão tende a esgotar essa fórmula.
“Em 2013, a média dos reajustes salariais empatou com a inflação. Mas dificilmente isso vai se repetir neste ano porque as projeções de aumento de custo de vida são muito maiores”, afirma o economista Ramiro Castiñeira, da Econométrica, consultoria especializada em estatísticas. Castiñeira estima que no cenário mais otimista a taxa de inflação deve alcançar 34% neste ano. No cálculo da Econométrica, a do ano passado ficou em 27,4%.
Alguns vendedores se aproveitam da urgência da compra, que persegue o consumidor argentino. Às 16h, Gabriel, vendedor da Sommier Center, pega a calculadora e oferece um desconto para pagamento à vista. A oferta tem validade curta. A partir das 18h30, avisa, o preço do colchão vai subir.
A poucas quadras dali, está a quitanda de Luis, um peruano que mudou-se para a Argentina há 15 anos para tentar uma vida melhor. Há um mês, ele comprou uma nova geladeira. Pagou em dinheiro. Se parcelasse em seis vezes, a geladeira ficaria 50% mais cara.
Na confusão dos preços que se instalou no país depois que o peso se desvalorizou em 23% em dois dias, em janeiro, os prazos dos financiamentos encolheram, o que indica, também, uma tendência de redução no consumo.
Nos últimos dias, houve também aumento das taxas de juros. Em janeiro, a taxa básica de juros deu um salto de 18% para 28,8% ao ano. “Quando os juros estão abaixo da inflação, há uma tendência de a população consumir o que pode”, afirma Dante Sica, diretor da consultoria Abeceb e ex-ministro da Indústria.
O aumento nas taxas de juros poderia estimular o consumidor a interessar-se pelas aplicações de prazo fixo. Mas os analistas duvidam que isso venha a ocorrer. “Quem aplica costuma se frustrar com a perda do poder de compra no dia do resgate”, diz Castiñeira.
Segundo estudos da Abeceb, quem tem renda mensal de até 20 mil pesos por mês – o equivalente a US$ 2.500 – tende a atirar-se ao consumo diante de um quadro inflacionário. “Compramos carros, eletrodomésticos, passagens, pintamos a casa e, quem pode, aumentou gastos no exterior”, destaca Sica. A balança comercial do turismo fechou negativa em US$ 9,5 bilhões em 2013.
A Federação de Câmaras e Comércio da Argentina registrou que 2013 houve aumento de vendas de 15% em celulares, 13% em eletrodomésticos e 12% em roupa esportiva. Segundo a Secretaria de Turismo, em janeiro, os hotéis em Bariloche registaram 80% de ocupação, e o gasto médio por turista em Mar del Plata cresceu 26,4% em relação ao último verão.
Acostumada às instabilidades econômicas, a classe média dá a impressão de não dar muita bola para a crise. Continua a lotar restaurantes e cafés. Alguns hábitos de conforto também resistem. Sócias, há 15 anos, de uma das centenas de lavanderias que se espalham por Buenos Aires, Norma e Cláudia não sentiram, ainda, nenhuma queda no movimento. “O cliente pode até reclamar do preço [que subiu 10% neste mês por conta do aumento no sabão em pó], mas ele continua a não querer lavar roupa em casa”, diz Cláudia.
O carro, visto no ano passado como um bom investimento, começa, no entanto, a sair da lista das ferramentas contra a inflação. Com 955 mil automóveis, 2013 foi o melhor ano de vendas da história da indústria automobilística do país. Mas uma carga tributária adicional nos importados de luxo já se refletiu nas vendas de janeiro, que recuaram 1,91% em comparação com o mesmo mês de 2013.
Segundo os economistas, a tendência é que os próximos reajustes salariais se distanciem da inflação, o que levará a uma queda natural de consumo de bens duráveis. “O desemprego é baixo hoje porque em 2013 foram criados muitos postos de trabalho. Mas é bem possível que os empresários negociem reajustes em troca de redução de jornada, por exemplo, já que existe uma expectativa de queda na atividade”, diz Catiñeira.
A antecipação de compras como forma de se proteger da inflação é combatida por entidades de classe. “Fazer a grande compra do mês ou levar dez pacotes de macarrão porque o preço vai subir leva a uma desorganização no planejamento de gastos”, diz Irma Muñoz, da Liga das Donas de Casa da Argentina. É comum também, hoje, que o valor no caixa seja superior ao exposto na gôndola. Perdido com a alta da inflação, o consumidor desatento leva a pior.
Do lado do governo, está em curso uma campanha semelhante à dos tempos em que o presidente José Sarney conclamou os brasileiros a ser “fiscais do Sarney”. A presidente Cristina Kirchner e membros de sua equipe econômica, principalmente o ministro-chefe de Gabinete, Jorge Capitanich, não se cansam de pedir à população para denunciar abusos de preços.
A guia turística Victoria Anastasi veste a camisa. Reclama de a água mineral, que ela compra para os clientes, custar 5, 8 e até 15 pesos, dependendo do ponto de venda. E aponta a escalada da inflação como “um grande plano político contra a presidente Cristina”.
Embora sob uma ótica distinta, o economista Sica concorda que o problema da inflação na Argentina não é econômico, mas, sim, político. “Se o governo não fizer o ajuste fiscal, no médio prazo vai esfriar a economia. E vai prosseguir com a emissão de moeda. Enquanto não mexerem nisso, continuarão a insistir que precisam negociar com os empresários para evitar aumentos de preços”, afirma.