Movimentos do governo estão despertando indagações sobre os rumos que se quer dar ao setor ferroviário brasileiro. A publicação das Resoluções nº 3.694, 3.695 e 3.696 pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), já em julho do ano passado, os recentes anúncios sobre como as ferrovias seriam incluídas em um novo pacote de concessões e, mais recentemente, as mudanças na legislação do setor propostas pela Medida Provisória (MP) nº 576, trazem diferentes interpretações sobre o futuro deste setor no país. Grande parte desse exercício, entretanto, vem se reduzindo a analisar se é o caso estampar o rótulo de privatização ou de estatização em cada movimento anunciado pelo governo.
Olhando para além da poeira dos rótulos, o que se tem é o governo trilhando um curso de tentativa, erro e ajustes iniciado há mais de uma década e meia, de modo a calibrar os graus ideais de participação do governo e de empresas privadas. Afinal, este é um setor que, historicamente, não chegou a ser modelo de eficiência enquanto administrado exclusivamente por entes públicos, mas não pode depender apenas do setor privado, quando se trata de dotar o país de uma malha ferroviária minimamente aceitável para suas dimensões continentais.
Nesse exercício, pode-se elencar três caminhos para a política pública do setor ferroviário, se implementada conforme se anuncia: a) desverticalização das atividades do setor; b) aumento da concorrência na prestação do serviço de transporte e c) reforço do investimento público na expansão da infraestrutura ferroviária. O primeiro item considera a separação entre gestão da infraestrutura de ferrovias e serviço de transporte (em princípio, para os novos trechos a serem concedidos). Em seguida, o aumento da concorrência se dá por instrumentos da regulação que permitem a uma concessionária de transporte ferroviário utilizar a via de outra concessionária para prestar serviços de transportes e pela criação de uma nova categoria de prestadores de serviço de transporte ferroviário – o operador ferroviário independente – e, por último, a expansão do investimento ocorrerá por meio da garantia de demanda de novas vias.
O aumento da concorrência pela efetivação do direito que uma concessionária tem de utilizar a malha por outra, impedindo que cada concessionária se contente apenas em operar as suas linhas ferroviárias e sem “alugá-las” a mais ninguém, é um objetivo claro da Resolução ANTT 3.695/2011. Ao contrário do que já se disse, essa Resolução não tem o efeito de quebrar um existente monopólio das concessionárias sobre os trechos sob sua operação. O direito de passagem (permite a uma concessionária de transporte ferroviário passar seus trens sobre as linhas férreas de outra) e o tráfego mútuo (permite a uma concessionária transporte carga de seus usuários em trens de outra) já eram previstos, porém eram de difícil aplicação. O que o chamado novo marco procura assegurar é que as concessionárias tenham mais facilidade em requisitar e receber o acesso à malha operada por outras concessionárias, obviamente pagando por tais direitos e desde que a concessionária a quem se requisita o acesso à malha tenha capacidade disponível para ceder.
Ao lado das medidas de maior integração da malha ferroviária pelas concessionárias em atuação, a MP nº 576 criou a figura daquele que irá circular seus trens pelas vias existentes, sem contudo, ser titular de uma concessão de linha férrea. Este empreendedor, que a medida chama de “operador logístico independente” não terá uma ferrovia sob sua operação, mas prestará serviços de transporte nas vias alheias, pagando pelo uso.
Tal figura passou a ser possível porque a nova política regulatória e de investimentos do setor ferroviário aponta para a desverticalização (ou unbundling, para quem aprecia uma expressão francófona) da atividade de transportes ferroviários, que nada mais é que a separação entre a função de construção e manutenção de linhas e a efetiva circulação de carga, ou seja, a atividade de transporte nessas vias. Isso se lê não apenas na criação da figura do operador logístico independente, mas também no anúncio de que o governo pretende licitar os serviços de construção e manutenção de novas vias (via parceria público-privada, ao que parece), adquirindo a totalidade da capacidade instalada dessas vias, para depois ceder a capacidade instalada aos operadores do serviço de transporte.
É certo que nem tudo está terminado para que se feche o ciclo acima descrito. A Resolução 3.695/2011, por exemplo, ainda não inclui o operador logístico independente entre aqueles que podem requisitar acesso às ferrovias operadas por outras empresas, o que faz com que não se tenha clareza sobre como esses operadores independentes poderão utilizar as ferrovias que hoje existem. Não foi esclarecido se a empresa pública responsável pela infraestrutura ferroviária, a Valec, pretende dar qualquer garantia ao pagamento pela capacidade instalada que adquirirá dos concessionários encarregados da construção e manutenção dos novos trechos, nem de que forma o faria. Adicionalmente, o modo pelo qual a Valec pretende organizar a revenda dessa capacidade instalada por ela adquirida aos operadores do mercado também não foi definido. E, para a tão urgente retomada da expansão do transporte ferroviário de cargas no Brasil, é mais produtivo se debruce, para além dos rótulos, sobre essas questões.
Por Maria Virginia N. do A. Mesquita e Larissa Leda Sabino, sócia e associada da área de Infraestrutura do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados