O fenômeno climático La Niña ganhou musculatura nas últimas semanas e reduziu subitamente o volume de chuvas na Argentina, forçando os produtores de soja a recalibrar suas estimativas para a nova safra (2010/11).
As chuvas alcançaram apenas 25% da média histórica em novembro e devem terminar este mês com menos de 60% do volume habitualmente registrado em dezembro. Com isso, ficaram defasadas as projeções otimistas de uma colheita em torno de 52 milhões de toneladas, conforme previa o Ministério da Agricultura.
O governo ainda não refez seus cálculos, mas analistas privados trabalham com um cenário entre 43 milhões e 48 milhões de toneladas. O nível exato de frustração depende do rigor do clima no início de 2011.
De acordo com a Bolsa de Cereais de Buenos Aires, tornaram-se irreais as perspectivas de repetir a área plantada de 19 milhões de hectares da safra passada (2009/10). A nova previsão é de 18,5 milhões de hectares. Mas esse não é o maior problema. Causa preocupação à entidade o fato de que o plantio está atrasado.
Às vésperas do Natal, o plantio havia atingido 75% da cobertura esperada. Na mesma época do ano passado, 86% da área coberta já estava plantada. “A janela de plantio ótimo encontra-se próxima a terminar em várias regiões sob análise”, informa a bolsa em seu último boletim semanal, “e o prognóstico de curto prazo não prevê chuvas que possam reverter a reduzida disponibilidade de água nessas áreas”.
O agrônomo Eduardo Sierra, especialista em climatologia da entidade portenha, afirmou ao Valorque não se espera “nada comparável à seca de 2008” – a pior no país em 75 anos -, mas definiu o mês de janeiro como fundamental para medir a extensão do impacto do La Niña na produção de grãos.
Ele lembra que os efeitos do fenômeno foram moderados até agora nos Estados brasileiros de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, mas sentidos com maior força a partir do Uruguai e do norte da Argentina. “Na zona sojífera por excelência, houve uma acentuação da seca. O milho já está bastante prejudicado. A soja está como um pugilista golpeado nas cordas de um ringue, mas ainda sem cair. Vamos ver o que acontece em janeiro, quando costuma chover mais que em dezembro”.
Na safra 2009/10, favorecida por condições climáticas que beiraram a perfeição para os agricultores, a Argentina teve uma colheita recorde de 54,5 milhões de toneladas de soja. Ninguém esperava a repetição desse cenário, mas a recuperação do trigo e a boa performance do milho acalentavam as esperanças do governo de romper a marca histórica de 100 milhões de toneladas em grãos e oleaginosas – o que, agora, é encarado como improvável.
Os preços, no entanto, devem continuar favorecendo o país e compensando parte da frustração com o desempenho da soja. Diante do equilíbrio global entre oferta e demanda, as notícias provenientes da Argentina fizeram a cotação da soja disparar em Chicago. Ontem o bushel (27,2 quilos) do grão para entrega em março subiu 2,50 centavos de dólar e fechou a US$ 13,87, o mais elevado patamar em 28 meses.
“Hoje, Chicago está vendo a América do Sul mais do que o Hemisfério Norte”, disse ao Valoro consultor Gustavo María López, diretor da Agritrend, para quem os preços vão se sustentar no nível atual, equivalente a pouco mais de US$ 500 por tonelada.
Com isso, no ano em que a Argentina escolherá o sucessor da presidente Cristina Kirchner, o governo terá quase US$ 9 bilhões em receitas fiscais advindas do campo – quatro em cada cinco dólares serão oriundos da soja, cujas exportações pagam impostos (retenções) no valor de 35%. Em 2010, o complexo de grãos deverá pagar um total de US$ 7,7 bilhões em retenções.
López acredita que a produção argentina de soja ainda poderá alcançar 48 milhões de toneladas, o que seria uma queda menos expressiva em relação à safra passada. Mas isso depende do rendimento dos cultivos em um cenário de chuvas menos intensas e, principalmente, de cultivar o que ainda não foi efetivamente plantado.
Ele estima que ainda restam cerca de 4,5 milhões de hectares para plantar. A maior parte está em províncias ao norte, zonas consideradas “marginais” na produção de soja, como Tucumán, Salta, Chaco e Santiago del Estero.
Segundo López, o atraso no plantio está relacionado à recuperação da safra de trigo. Na temporada passada, apenas 9% da produção total de oleaginosa foi de soja de segunda (a que se segue ao cultivo do trigo). Já na safra 2010/11, essa proporção é de 16%, o que levou ao adiamento do plantio de soja por muitos produtores, que acabaram submetendo-se aos riscos do La Niña.
No fim das contas, quem pode se beneficiar da situação é o Brasil, que está sofrendo menos com a falta de chuvas, sobretudo no Cerrado. Os produtores brasileiros, caso consigam manter uma boa produtividade, podem ser “premiados” pelos preços em alta causados pelas novas incertezas da Argentina.