A competitividade sistêmica da economia brasileira piorou nos últimos três anos, tornando mais dolorido para o setor privado um câmbio de R$ 1,70, diz o economista José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior (Camex). Para ele, a falta de investimentos em infraestrutura, a carga tributária elevada e complexa e os números ainda ruins da educação no País atrapalham muito a vida das empresas. “O dólar a R$ 1,70 espreme as margens, e isso fica particularmente doído porque nós estamos menos competitivos. Isso machuca mais do que há três anos”, diz Mendonça de Barros, sócio da MB Associados.
Para ele, “apesar do auê” em relação ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), os investimentos em infraestrutura no Brasil continuam baixos, muito aquém do necessário até mesmo para manter o nível de estoque de capital no setor. Na questão tributária, Mendonça de Barros aponta não só o peso e a complexidade do sistema de impostos no País, mas também a dificuldade de as empresas conseguirem a devolução de créditos tributários acumulados. No caso da educação, os indicadores apontam algumas melhoras nos últimos anos, mas há números ainda alarmantes, como o fato de que, em 2007, 32% dos adultos eram analfabetos funcionais. Fatores como esses tornam mais pesado o dólar a R$ 1,70, diz ele, especialmente num cenário ruim para o comércio global.
Mendonça de Barros, porém, não vê o nível do câmbio com tanta preocupação como alguns analistas. Para ele, um ponto importante é que o dólar não deve cair para a casa de R$ 1,50 – é mais provável que fique entre R$ 1,70 e R$ 1,80. Daqui para frente, as importações devem crescer muito, diz, aumentando a demanda por dólares no mercado. Além disso, com a perspectiva de recuperação da economia americana, a moeda dos EUA deve ganhar em 2010 algum terreno perdido neste ano. Como o real se valorizou em boa parte por causa da queda do dólar, deve se depreciar quando a divisa americana se fortalecer, avalia Mendonça de Barros.
Ele também considera exagerados os temores de desindustrialização e doença holandesa (fenômeno pelo qual as exportações de commodities valorizam demais o câmbio, inviabilizando setores de manufaturados). “As cadeias de recursos naturais são cada vez mais longas e têm cada vez mais tecnologia embutida. Elas estimulam o aparecimento de atividades industriais e de serviços novas.”
Ter uma política fiscal mais austera, com mais investimentos em infraestrutura, e facilitar a devolução de créditos tributários acumulados podem ter um resultado mais favorável para a competitividade da economia, diz ele, que vê com maus olhos a recente tentativa do governo de controlar capitais, por meio da taxação de 2% do fluxo estrangeiro que vem para a Bolsa e para a renda fixa.
Para 2010, Mendonça de Barros vê uma economia em forte recuperação, crescendo 5%, ancorada no consumo das famílias. Segundo ele, o ajuste brasileiro à crise seguiu o padrão europeu, com prioridade à manutenção do emprego. Uma das implicações é que a recuperação é liderada pelo consumo. O investimento demorará um pouco mais para voltar. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: A maior parte dos analistas projeta um crescimento na casa de 5% para 2010. Esse número é factível?
José Roberto Mendonça de Barros: Para 2010, o que há de universalmente aceito é que o crescimento deve ser expressivo. Nós estamos com 5%, mas pode ser mais do que isso. Um número de 6% é factível, mas não acho o mais provável.
Valor: Por quê?
Mendonça de Barros: Há um fator difícil de avaliar para fazer a projeção: em que medida não houve uma certa antecipação do consumo neste ano, principalmente de automóveis? Nós avaliamos que alguma antecipação ocorreu. As vendas foram muito fortes nos meses em que havia a possibilidade do fim dos incentivos. Foi quase um processo de renovação de frota. Outro ponto é que todo mundo tem olhado o consumo e o setor imobiliário com projeções independentes, mas é provável que a expansão de financiamentos na faixa de imóveis de R$ 80 mil a R$ 100 mil possa comer parte da demanda por automóveis. Foi o que ocorreu no México. Por causa disso, acreditamos num número de 5% de crescimento em 2010, que deverá estar ancorado no consumo das famílias e também no consumo do governo.
Valor: Como deverá ficar o investimento?
Mendonça de Barros: A alta deve ser expressiva em 2010, primeiro porque ele caiu bastante em 2009. Ele parte de uma base baixa e deve voltar devagar. A capacidade instalada não deve ser preenchida tão rapidamente. Veja o caso do setor de automóveis. A queda das exportações fez com que aparecesse uma capacidade ociosa e ainda hoje há folga. Outro ponto é que muita gente estava investindo antes da crise, então ainda está entalada, acertando as contas. Por fim, há uma consolidação em alguns setores, como o de açúcar e álcool e o de frigoríficos. Quando há consolidação, há cortes de custos e busca de sinergia, que é um modo gentil de mandar gente embora. Nesses segmentos, a volta do investimento será mais lenta.
Valor: Como o sr. analisa a resposta brasileira e da economia global à crise?
Mendonça de Barros: Com o benefício de olhar para trás, hoje está claro que nós tivemos três trajetórias de ajuste depois da quebra do Lehman Brothers. O ajuste de melhor qualidade é o chinês. No primeiro semestre, o investimento respondeu por 85% do crescimento do PIB. E o investimento não foi no aumento da capacidade produtiva, até porque não haveria para quem vender. Eles investiram em transportes, em eficiência no consumo de energia, na reconstrução de áreas atingidas por desastres naturais e também em pesquisa, em conhecimento. Foi uma busca de melhora de competitividade sistêmica, preparando-se para um inevitável valorização do yuan que terá de ocorrer em algum momento. A recuperação chinesa é a mais sustentável e a mais adequada possível, também feita com o uso de estímulos monetários e fiscais.
Valor: E quais foram os outros dois tipos de ajuste?
Mendonça de Barros: O modelo americano foi no outro extremo. Como o chinês, também adequado à institucionalidade do país. Houve uma forte expansão fiscal e monetária, mas o ajuste foi feito em grande parte pelas empresas privadas, com demissões e reduções de custos. Isso aumentou a lucratividade das empresas. Com essa melhora de rentabilidade e mais a desvalorização do dólar, que aumenta a competitividade das exportações e de quem compete com importações, a produção industrial começa a melhorar, o que é importante para levar a novas contratações. O terceiro caminho de ajuste foi feito pelos países europeus continentais, como França e Alemanha. Os esforços foram direcionados para a manutenção do emprego, algo também ajustado à institucionalidade europeia. Houve uma expansão monetária cavalar e expansão fiscal cavalar, direcionadas à manutenção do emprego. No caso da venda da Opel, o critério mais relevante é não desempregar na Alemanha. Outro exemplo é que o governo alemão subsidiou a manutenção de empregos.
Valor: E o ajuste brasileiro?
Mendonça de Barros: O ajuste brasileiro é parecido com o europeu. O esforço do governo foi concentrado na manutenção do emprego. Houve estímulos para o setor privado manter empregos, como no caso da redução de impostos para o setor automotivo. No setor público, houve contratações e aumentos de salários. A primeira implicação é que no Brasil, como na Europa, a recuperação é 100% movida pelo consumo. Mas, ao concentrar no consumo, o investimento foi fortemente prejudicado. O câmbio está incomodando mais porque a competitividade sistêmica do Brasil ficou menor. A competitividade do país vem diminuindo nos últimos três anos.
Valor: A competitividade diminuiu mesmo com o forte aumento do investimento de 2006 a 2008?
Mendonça de Barros: O investimento nesse período esteve associado ao aumento da capacidade produtiva em alguns segmentos, mas não na competitividade sistêmica da economia. Veja o caso da infraestrutura. Mesmo com todo o auê do PAC, a situação é de sentar e chorar. O Cláudio Frischtak [economista, sócio da consultoria Inter B] estima que, apenas para manter o estoque de capital, o país teria que investir de 3% a 3,5% do PIB por ano em infraestrutura, mas o país tem investido bem menos que isso. De 2008 a 2010, ele acredita que a média vai ficar em 2,43% do PIB. Isso come o estoque de capital em infraestrutura, piora a qualidade. Para comparação e para nossa tristeza, o Chile gasta 6,2%, a China, 7,3% e a Índia, 7,5% do PIB.
Valor: O que mais prejudica a competitividade sistêmica do país?
Mendonça de Barros: Ela está pior também por causa da questão dos tributos. A carga tributária aumentou, todo mundo sabe disso, mas o que mata é que a carga de impostos recuperáveis e não recuperados é crescente. Outro ponto é que, como diz o Jorge Gerdau [presidente do Conselho de Administração da Gerdau] não é apenas o imposto que é alto, mas há um custo administrativo pesado para gerenciar o sistema de tributos no país. Além disso, existe a questão de educação. Há melhoras, mas, segundo números de 2007, 32% dos brasileiros adultos são analfabetos funcionais. É um número muito ruim. Outro ponto é que o Brasil foi um dos únicos países onde o custo de energia não caiu depois da crise. Alguém pode dizer que eles não haviam subido antes, porque parte dos preços é controlada, como os de alguns derivados de petróleo, mas não caíram agora.
Valor: É por isso então que o câmbio valorizado incomoda mais?
Mendonça de Barros: O dólar a R$ 1,70 espreme as margens, e isso fica particularmente doído porque nós estamos menos competitivos. Isso machuca mais do que há três anos. Quando o mundo cresce bastante, há espaço para todo mundo. Quando o comércio global encolhe e há uma valorização do câmbio, fica muito mais complicado. Há uma outra questão importante. A capacidade fiscal do governo está sendo erodida e em algum momento isso vai cobrar um preço. O crescimento do ano que vem é muito bem-vindo, a expansão baseada em consumo é a mais eficiente do ponto de vista político, mas há algumas dificuldades. O investimento na competitividade sistêmica não está ocorrendo. Em combinação com o real valorizado, isso espreme o setor produtivo.
Valor: Em que medida a valorização do câmbio preocupa o sr.?
Mendonça de Barros: Eu tenho preocupação em relação ao câmbio, mas ela é menor do que a de algumas pessoas, por dois ou três motivos. Primeiro, eu não compro a ideia da doença holandesa e da desindustrialização. As cadeias de recursos naturais são cada vez mais longas e têm cada vez mais tecnologia embutida. Elas estimulam o aparecimento de atividades industriais e de serviços novas, como no segmento álcool-químico, na energia do bagaço de cana de açúcar, nos combustíveis de segunda geração e nas empresas que vendem equipamentos para esses setores. Na cadeia do petróleo, há espaço para uma montanha de coisas novas. As pessoas muitas vezes perdem de vista essa questão. Outra questão tem a ver com o tamanho do mercado brasileiro. Quando há um mercado grande em termos de volume, distante dos fornecedores mais importantes, há uma atração muito grande para a produção local, especialmente quando se o usa sistema “just in time”. Nesse caso, é difícil atender 100% do mercado com importações. A indústria automobilística, por exemplo, vai bem, obrigado, apesar do forte aumento de importações.
Valor: Os temores de desindustrialização são exagerados?
Mendonça de Barros: Eu nunca vi ninguém dar exemplos convincentes fora de setores como calçados, vestuário, madeira e pequenos eletrodomésticos. Se você colocar o câmbio a R$ 2, não muda muita coisa, porque o diferencial de custo é absolutamente extraordinário.
Valor: O que o sr. acha que vai ocorrer com o câmbio?
Mendonça de Barros: Não acho que se possa projetar que o dólar irá em marcha batida para R$ 1,50. Acho mais provável algo entre R$ 1,70 e R$ 1,80. Em outros ciclos de valorização, o diferencial de juros internos e externos era disparatado, hoje não é mais assim. Outra questão é que as importações vão crescer muito. Haverá mais uma demanda importante por dólares além da do Banco Central. Além disso, se a recuperação dos EUA se sustentar, o dólar vai pegar de volta um pedaço da desvalorização deste ano. Com isso, o real tende a se desvalorizar um pouco, já que parte da apreciação deste ano é reflexo da perda de força do dólar no mercado internacional.
Valor: O que o sr. achou da adoção do IOF de 2% na entrada de capital externo em Bolsa e renda fixa?
Mendonça de Barros: Eu detesto esse tipo de medida. É ineficiente até para arrecadar dinheiro. Ela aumenta o custo de capital para as empresas e o custo da dívida pública. Para que houvesse sucesso, teria que haver uma estrutura de intervenções mais complicada. Seria necessário intervir no mercado futuro, mas a nossa experiência nesse sentido não foi boa. Alguns dizem que a China intervém com força no câmbio, mas esquecem que na China há uma estrutura de controle do Estado sobre tudo. Além disso, a China tem uma gigantesca taxa de poupança e a dívida pública é baixa, o que torna muito mais fácil segurar o câmbio. A valorização do câmbio tem vantagens e desvantagens. Ela comprime as margens, mas barateia o investimento, por exemplo.
Valor: Há algo a fazer?
Mendonça de Barros: Acho que pode se fazer coisas pontuais, como a questão de maior liberalização do câmbio, ou da sugestão da BM&F, de que os investidores estrangeiros depositem as garantias no exterior. São medidas menos charmosas, mas que podem ter algum impacto. Uma política fiscal mais austera também teria impacto, permitindo que se aumentem investimentos que elevem a competitividade sistêmica da economia. Mexer em aspectos tributários, fazendo com que as empresas consigam a devolução de créditos acumulados, também pode ajudar a melhorar a competitividade de exportadores e de quem concorre com importados no mercado interno.