Fonte CEPEA

Carregando cotações...

Ver cotações

Economia

Ponto fraco

<p>Para BNDES, real forte prejudica economia. Segundo assessor, câmbio já afeta a competitividade.</p>

Depois de atingir um nível mais elevado e equilibrado na crise, de março para cá a taxa de câmbio brasileira vive um processo acelerado de apreciação do real. Na semana passada, atingiu R$ 1,82/US$ 1,00, voltando a níveis pré-crise de agosto de 2008, antes da queda do Lehman Brothers, constata Francisco Eduardo Pires de Souza, professor de economia do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e assessor da diretoria de Planejamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

A seu ver o real está muito apreciado e já traz consequências negativas sobre a competitividade das exportações de manufaturados brasileiros, que, nos últimos 12 meses até junho, encolheram para 45% sua presença no total das vendas externas do país. Em 1993 esta participação era de 61%.

Souza, que finaliza um estudo intitulado “A Agenda de Política Econômica para Enfrentar a Crise e a Questão Cambial”, discorda do senso comum de que foi o dólar que se desvalorizou mundialmente. “Não concordo com isso. Um indicador do banco central americano (Fed), que mede diariamente a taxa de câmbio do dólar em relação a uma cesta ampla de moedas, revela que, do início do ano para cá, esta cesta se apreciou em média 4% e o real, 20%. O problema, pois, não é o dólar se desvalorizando, é o real se apreciando. Este é o principal problema da economia brasileira hoje.”

O processo é mais induzido pela própria expectativa de valorização do real por parte dos agentes econômicos do que pelo diferencial de juro. “Esta expectativa está levando ao ingresso no Brasil de grandes fluxos de capital mais dirigidos para a Bolsa do que para a renda fixa, que acabam confirmando estas previsões de queda do dólar.” Ele adverte que a apreciação de 20% do real, apenas dez pontos percentuais abaixo do nível de 30% atingidos no Plano Real em 1998, acendeu o sinal amarelo. ” É hora de o câmbio se tornar uma preocupação de governo e não só do Banco Central”, avisa. A seguir, trechos da entrevista:

Valor: Apesar do sucesso das medidas adotados pelo governo nas áreas monetária e fiscal, que têm reativado a economia brasileira, é possível ignorar a questão cambial neste momento em que a indústria está apresentando recuperação?

Francisco Eduardo Pires de Souza: A curto prazo podemos até ter uma expansão bastante forte da demanda doméstica, como no caso de automóveis, beneficiados com a suspensão do IPI. Algumas montadoras até estão anunciando investimentos, mas as exportações de automóveis estão despencando, e as importações, disparando. Se o mercado interno crescer muito durante algum tempo é possível conciliar com o câmbio. Mas é óbvio que o real forte é um problema a médio prazo para a indústria brasileira. Ela vai perdendo peso, ficando mais magrinha e partes da indústria, que poderiam ser competitivas com uma taxa de câmbio mais depreciada, deixam de sê-lo. Vamos continuar perdendo espaço no mercado interno e externo.

Valor: Por quê?

Francisco Eduardo: As exportações de manufaturados estão perdendo competitividade num momento em que há aumento da capacidade de oferta e a competição se torna feroz no comércio global. Numa situação dessas, se torna mais preocupante a evolução do câmbio no Brasil.

Valor: O sr. mediu a perda de espaço dos manufaturados brasileiros no comércio mundial?

Francisco Eduardo: Se verificarmos a participação em volume das exportações brasileiras de manufaturados de 2005 para cá, elas tiveram uma queda de 17% relativamente às exportações de manufaturados mundiais. Então, o Brasil perdeu ‘market share’ no mercado internacional de manufaturas nesses três anos por conta, fundamentalmente, da apreciação cambial. E como ela voltou, vamos voltar a perder espaço, não só para a China, mas para outros asiáticos e até para países da Europa Central.

Valor: O movimento de apreciação vai passar?

Francisco Eduardo: Se nada for feito, a tendência é que a taxa de câmbio se aprecie até o ponto em que os investidores se convençam de que, dali para frente, só pode depreciar e não é mais um bom negócio continuar colocando seus investimentos aqui. Em geral, quando os investidores se convencem disso, o câmbio já passou muito de uma posição que possa ser considerada um ponto de equilíbrio. Podemos ter um processo de superapreciação da moeda local.

Valor: Isso não aconteceu na época do presidente Fernado Henrique Cardoso?

Francisco Eduardo: O câmbio baixou muito no início do Plano Real. Só que hoje nós estamos com um nível de taxa de câmbio real no Brasil pouco acima do nível daquela época. Em 1998, último ano do período do Plano Real, a taxa de câmbio estava praticamente 30% abaixo do nível pré-real. Ou seja, o real estava apreciado em 30%. Depois, com a desvalorização de 1999, ela sobe. E hoje, com este processo de apreciação que aconteceu agora, está num nível de apreciação de 20% em relação ao pré-real. Quase batendo no que foi em 1998. Está dez pontos percentuais menor do que estava em 1998, mas está quase chegando lá. Saiu de um nível 100, em junho de 1994, baixou para 70 em 1998, e agora está num nível de 80.

Valor: O sr. acha que este nível já acende um sinal amarelo?

Francisco Eduardo: Sim, com certeza.

Valor: Durante a crise essa taxa não foi corrigida?

Francisco Eduardo: Sim, mas essa correção não foi sustentada. Em dezembro de 2008 ela estava corrigida, num nível de 107, acima do pré-real. Só que de março para cá houve uma apreciação muito grande. As pessoas falam que foi o dólar que se desvalorizou mundialmente.

Valor: O sr. concorda com essa análise?

Francisco Eduardo: Não concordo. O banco central americano, o Fed, publica diariamente uma taxa de câmbio do dólar em relação a uma cesta ampla de moedas. Esta cesta ampla de moedas do início de 2009 para cá se apreciou, em média, 4%, e o real, 20%. Então é uma diferença muito grande. Fica claro que o problema não é o dólar se desvalorizando, é o real se apreciando. Este é o problema principal da nossa economia hoje.

Valor: Pode-se atribuir a volta da valorização do real ao diferencial de juro?

Francisco Eduardo: O juro foi uma causa importante. Ainda existe um diferencial de juro muito grande entre o Brasil e o resto do mundo. Mas neste momento o que está sendo importante é a própria expectativa que o real vai se apreciar. No mundo inteiro, os investidores estão sendo aconselhados a investir em reais. Também em outras moedas, mas o Brasil é uma delas. Não necessariamente em títulos de renda fixa. Pode ser em bolsa de valores, como estão fazendo. Houve uma entrada muito grande na bolsa. Esta expectativa de apreciação do real acaba levando a fluxos de entrada de capital, que acabam confirmando as expectativas prévias. Então, é um processo de profecia autorrealizada.

Valor: O sr. considera que o Brasil está num posição privilegiada de receptor de capitais?

Francisco Eduardo: Este privilégio tem suas armadilhas. O país recebe uma quantidade grande de capitais, o que leva à apreciação cambial e acaba, a médio prazo, criando problemas para o crescimento do país. Existem vários estudos que mostram que inúmeros países que vivem este processo terminam com um déficit em conta corrente que, inicialmente, é financiável, mas em algum momento mais à frente, este processo é revertido de forma súbita, quando o endividamento já cresceu bastante e se começa a colocar suspeita sobre a sustentabilidade deste processo, e aí se tem uma crise financeira e cambial. Isto acaba provocando a necessidade de ajustes fortes na taxa de juro e mergulha a economia na recessão. Nós já vimos este filme.

Valor: O sr. acha que hoje estamos imunizados contra isto?

Francisco Eduardo: Ninguém está imunizado. O Brasil hoje está com uma posição muito mais sólida do que no passado. Uma crise desta demoraria muito mais tempo a chegar lá. Tem uma posição fiscal boa, reservas grandes e partindo mesmo de um déficit em conta corrente pequeno, de 1%, mas que já está subindo. Estamos imunizados hoje, mas não para sempre. Se entrarmos de cabeça num processo desses, em algum momento, mais à frente, o país pode sofrer uma deterioração de suas contas externas e ter uma crise cambial, com certeza.

Valor: Não é o momento do governo evitar que esta taxa caia para R$ 1,70?

Francisco Eduardo: O Meirelles (Henrique, presidente do Banco Central) chegou até a mostrar preocupação com este problema e advertiu o mercado que ele pode estar indo na direção errada. Mas não basta falar. Tem que falar e tomar alguma atitude, adotar algumas políticas que indiquem que “olha, nós vamos fazer alguma coisa no sentido de não permitir isto”.

Valor: O sr. acredita que vamos ter que conviver com este câmbio ou algo poderia ser feito? O quê?

Francisco Eduardo: Acho que algo pode ser feito pelo governo como um todo, a questão é de política econômica. Não apenas do BC. Reconheço que não é fácil. Mas este é o momento. A taxa de câmbio brasileira está altamente apreciada. Devo ressaltar que muitos países estão conseguindo evitar uma apreciação tão grande quanto a que temos aqui no Brasil. Você vê que a média global da apreciação em relação ao dólar é 4% e não 20% como aqui. Existem meios diversos de combate ao câmbio excessivamente apreciado. Ainda está em tempo de o governo corrigir o câmbio de forma não inflacionária. Hoje, a inflação ainda está baixa, a indústria tem capacidade ociosa e não temos inflação de demanda.

Valor: Que medidas poderiam ser adotadas?

Francisco Eduardo: A primeira coisa a fazer é encarecer o custo de apostar no real. Isso é importante. Colocar uma tributação na entrada dos capitais especulativos de curto prazo. Há algum tempo atrás, o Tesouro isentou os investidores estrangeiros do pagamento do IR sobre aplicação em títulos públicos de longo prazo. É o tipo da coisa que é o contrário do que deve ser feito. A própria política de compra de reservas tem que ser intensificada. A saída do BC do mercado futuro de câmbio, como foi noticiado, mostra que a instituição está deixando de usar um instrumento de combate ao câmbio apreciado e optando por ficar mais com instrumento de intervenção do mercado à vista. Mas nada impede o BC de ampliar a intervenção no mercado de câmbio. Atualmente, o fato de ter baixado a taxa de juro facilita fazer política de compra de reservas. O custo de oportunidade de acumular reservas baixou. O Banco Central tem que explorar mais isto. É importante explorar políticas que reduzam a entrada de capitais para fazer arbitragem ou outras aplicações especulativas.

Valor: O sr. consegue ver este movimento de apreciação como conjuntural?

Francisco Eduardo: Não. Ele é tendencial e em nada sendo feito vai até piorar um pouco, vai se agravar.