À mesa ou não, na imprensa e nos sites, os portugueses travam um sério debate sobre a alheira. Fanáticos por esse embutido ou enchido (como dizem), cujo recheio leva várias carnes, sobretudo a de porco, banha, temperos e muito alho (daí o nome), transformaram-no em tema cívico. A discussão começou há algum tempo, com a denúncia de contaminação por bactéria. Afinal, descobriu-se que o perigo era eliminado no cozimento. Hoje, a polêmica se concentra nas variações heterodoxas, uma feita com bacalhau, outra vegetariana. Ambas procedem de Mirandela, na região de Trás-os-Montes e Alto Douro, a terra de origem da receita mais tradicional.
O colunista gastronômico Virgilio Nogueiro Gomes, de Lisboa, criticou duramente as novidades. “Por favor, chamem o que quiserem a estes produtos”, desabafou em seu site (www.virgiliogomes.com). “Mas não os chamem de alheiras”.
Qual o motivo para uma discussão acalorada em torno de um embutido cujo prestígio até há pouco se circunscrevia à região de Trás-os-Montes e Alto Douro? A razão parece ser subliminar. A alheira evoca um episódio crucial e vergonhoso da formação de Portugal: o decreto de expulsão dos judeus, assinado a 5 de dezembro de 1496, pelo rei d. Manuel I, o mesmo que patrocinou a descoberta do Brasil.
Os judeus que permaneceram em Portugal foram obrigados a adotar oficialmente o catolicismo, convertendo-se em cristãos novos. A pena para os desobedientes era o confisco dos bens e a morte. Muitos deles possuíam dinheiro. Alguns viviam de emprestá-lo a juros, atividade importante numa época sem bancos. Outros se dedicavam ao comércio, às funções públicas, como a cobrança de impostos, ou atuavam como tesoureiros, secretários, diplomatas e ministros de reis. As ciências, a medicina, a matemática e a astronomia costumavam ser exercidas por judeus. Entretanto, o grosso da população era constituído de pessoas menos abonadas.
Humilhados e ofendidos, esses judeus ficaram em Portugal, submetendo-se ao batismo. Mas continuaram a ser vistos como inimigos da fé católica, pois, apesar de assistirem à missa e comungarem, em casa conservavam as tradições e a fé religiosa. Escapando da perseguição, muitos “convertidos” se refugiaram em lugares isolados. Nessa época, na virada do século 15 para o 16, inventaram a alheira. Precisavam esconder o veto à carne de porco, previsto nas leis de kashrut. Assim, criaram um embutido com as carnes de vitelo, boi, aves, caça, além de pão de centeio; e o temperavam com azeite (não banha), colorau doce e picante, pimenta branca, sal, salsa, louro, cebola e bastante alho, e colocavam em tripa de boi (não de porco).
Quem se atreveria a dizer que não comiam um derivado de suíno? Apresentando o formato de uma ferradura cilíndrica, a alheira se parecia com os demais chouriços de porco. Os dedos-duros da Santa Inquisição passavam diante das casas dos judeus e achavam que os moradores eram cristãos-velhos, pois consumiam suíno.
Descoberta e incorporada pela culinária dos cristãos-velhos, a alheira se difundiu por todo o país. E, paradoxalmente, incorporou a carne suína. (Não teria sido essa a primeira deturpação?) Hoje, a receita tradicional varia ligeiramente de um lugar para outro. O modo de fazer, porém, é uniforme. Prepara-se a alheira na grelha ou na frigideira de barro, previamente furada para a gordura escapar e a pele resultar estaladiça. Os acompanhamentos ideais são batatas cozidas e grelos (brotos de couve ou nabo) salteados na gordura das alheiras. Em Lisboa, servem-na com batata frita e ovo estrelado. Fica deliciosa, mas pesada demais. Haja estômago!