Da Redação 23/03/2005 – Quando olha para o chão, o rosto crispado do agricultor Ercílio Domingues Donatti, do pequeno município de Espumoso, no centro do Rio Grande do Sul, reflete a terra ressecada e as plantas de soja carbonizadas pela estiagem e pelo sol a pino. Quando levanta a cabeça e analisa as alternativas que tem para enfrentar o problema, o que vê é incerteza e uma sensação de que logo poderá ser obrigado a deixar a terra natal para tentar a sorte em outra região do país.
Aos 53 anos, mas aparentando mais, Donatti é a expressão da devastação causada pela estiagem que se arrasta há mais de três meses e já liquidou 62% das lavouras de soja e 55% das plantações de milho do Estado. Em todo o Rio Grande do Sul, estas quebras significam uma perda recorde de pouco mais de 5 milhões de toneladas de soja e de quase 2,5 milhões de toneladas de milho em comparação com as projeções iniciais para a safra 2004/05, segundo a Emater-RS.
As estimativas sobre os prejuízos financeiros provocados pela estiagem variam. Em um dos cenários mais pessimistas, Antônio Sartori, vice-presidente da Federação das Associações Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul) e diretor da corretora Brasoja, calcula R$ 20 bilhões, somadas as perdas de renda dos produtores e de todos os elos da cadeia do agronegócio. Segundo o economista Martinho Lazzari, da Fundação de Economia e Estatística (FEE), a queda do PIB agropecuário gaúcho em 2005 deverá ser maior do que no ano passado, quando o indicador recuou 1,3% e pressionou o desempenho do PIB total do Estado, que caiu de 5,4%, em 2003, para 3,6%.
Com menos de 30 hectares plantados com soja e milho, Donatti encerra a safra com dívidas de R$ 20 mil – uma “fortuna”, segundo ele – e um seguro agrícola contratado apenas sobre um empréstimo de R$ 6 mil tomado no sistema financeiro. O resto ele deve para a cooperativa local, a Cotriel. “Às vezes acho que temos que ir para a cidade, mas lá não tem emprego”, afirma.
Donatti quer vender parte de sua propriedade no Rio Grande do Sul para comprar um pedaço de terra no Mato Grosso e mandar os filhos para o Estado. Com o preço da venda de 10 hectares em Espumoso, ele crê que pode comprar até 100 no Mato Grosso. “Conheço ex-vizinhos que foram para lá anos atrás e hoje estão bem porque o clima é melhor”, comenta ao lado de sua “frota” de máquinas agrícolas: uma colheitadeira ano 1977 e um trator 1974.
Com 133 hectares plantados com soja, Arnaldo Klein, 58 anos, viu a estimativa de colher 7 mil sacas transformar-se em apenas mil. E a renda, prevista em mais de R$ 230 mil, cairá para R$ 33 mil, o equivalente a um terço da dívida contraída junto a uma cooperativa e ao Banco do Brasil para cobrir custeio e investimentos da safra. “A situação é de calamidade”, afirma o agricultor, que trabalha com a mulher e três filhos na propriedade herdada do pai.
O cenário encontrado nas coxilhas que abrigam as lavouras de soja de Klein ajuda a entender o estado de espírito do produtor. Um tapete de folhas secas cobre as trilhas abertas entre as plantas minguadas pela falta de água. “Quando a safra é boa não dá nem para caminhar por aqui”, compara. Algumas plantas até que estão verdes, mas não produziram vagens. E quando os grãos se formaram, ficaram irregulares, verdes e sem servir sequer para semente porque não têm vigor para germinar, conforme explicou Benjamin Basso, engenheiro agrônomo da Cotriel.
Segundo Basso, as plantações semeadas mais cedo, no fim de outubro de 2004, são as que mais sofreram porque passaram pelas fases de floração e enchimento de grãos sob estiagem. “As plantas consomem no mínimo quatro milímetros de água por dia no período de enchimento de grãos e em todo o mês de fevereiro só choveu 27 milímetros na região”. As lavouras plantadas em meados de novembro se recuperaram um pouco com a chuva do início da semana passada, mas das 70 vagens produzidas normalmente por pé de soja, a média caiu para dez ou 12.
Com a soja perdida, Klein espera a implementação das medidas de apoio aos atingidos pela estiagem anunciadas pelo governo federal. Principalmente a possibilidade de parcelar em até três vezes as dívidas que vencem este ano. “Pagar dois financiamentos de custeio de uma só vez quebraria nosso pescoço”, afirma. Ele espera, ainda, que os R$ 800 milhões prometidos para as lavouras de inverno na região Sul saiam do papel para plantar trigo, mas teme que as perdas da safra reduzam a capacidade de endividamento dos produtores.
Jovani Luiz Tomazzi, de 40 anos, também espera pelo socorro oficial para a partir de abril plantar trigo e pastagens na metade dos 47 hectares onde havia semeado as culturas de verão com o pai e os dois irmãos. A soja ocupou 40 hectares, e das 50 a 60 sacas por hectare que a família costuma colher, o rendimento deve cair abaixo de 6 sacas, segundo Tomazzi. Como principal alternativa de renda, ele conta com os 8 mil litros de leite produzidos por mês pelas 30 vacas leiteiras mantidas na propriedade.
Há um mês, Tomazzi plantou soja em uma área de milho dizimada pela seca, mas a época de semeadura distante da ideal – que termina em dezembro – e a persistente estiagem não permitem esperar mais que 5 sacas por hectare, prevê Basso. O resultado do desastre climático foi uma dívida de cerca de R$ 35 mil com a Cotriel, que financiou a lavoura da família.
A própria Cotriel está em situação delicada. A cooperativa financiou cerca de R$ 20 milhões para a safra de verão de parte de seus 3,8 mil associados. Mas, apesar do fantasma da inadimplência, a Cotriel, que fatura R$ 225 milhões por ano, não pretende deixar seus cooperados à própria sorte. “O associado fiel, que entrega toda a produção aqui, terá os prazos alongados e condições de tocar o trabalho”, assegura o vice-presidente Rosalvo Kummer. Segundo ele, 40% dos recursos emprestados fazem parte do capital de giro da cooperativa, e o restante foi tomado nos bancos e repassado na forma de insumos.
Segundo Kummer, 80% dos produtores ligados à Cotriel têm propriedades pequenas (até 50 hectares), o que aumenta a responsabilidade da cooperativa para evitar uma quebradeira geral depois da segunda frustração consecutiva da safra na região. Em 2003/04, a produção foi de 2,3 milhões de sacas, ante 3,3 milhões em 2002/03. Agora, a produção total não deve passar de 800 mil sacas nos cerca de 110 mil hectares dedicados à cultura na região.