Redação (27/02/2008)- A confusão que a pecuária de corte vive hoje trouxe à tona a possibilidade ao Brasil de reclamar na Organização Mundial do Comércio (OMC) contra o embargo imposto pela União Européia (UE) às exportações de carne bovina. Há várias manifestações nessa linha: setor privado, Parlamento e mesmo Itamaraty. O tema merece especial atenção, pois um contencioso desse tipo, ou mesmo sua ameaça, pode mais atrapalhar que ajudar.
O Acordo Sanitário e Fitossanitário da OMC assinado na Rodada Uruguai introduziu a exigência de evidência científica para estabelecer qualquer barreira sanitária ao comércio. O acordo SPS, como é conhecido, já foi utilizado algumas vezes no sistema de solução de controvérsias da OMC. No caso da pecuária cabe citar o contencioso iniciado pelos EUA contra a UE referente às restrições da utilização de hormônios de crescimento em bovinos. Os EUA venceram, provando cientificamente a inexistência de risco para a saúde humana, porém, a UE, ignorando o resultado, continuou restringindo o comércio.
No caso do Brasil, um possível questionamento seria a consistência científica à obrigatoriedade da rastreabilidade individual de bovinos ou a exigência de lista de propriedades previamente aprovadas para a exportação.
A crise da doença da vaca louca nos anos 90 levou a UE a introduzir um sistema de rastreabilidade que identifica cada animal do nascimento ao abate. A partir dessa introdução, passou a exigir que os países exportadores apresentassem também seus sistemas de controle, não necessariamente idênticos, mas confiáveis, e que transmitissem a segurança que buscavam. Para tanto, o Brasil apresentou em 2002 o Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos (Sisbov), que não tem correspondido às expectativas da UE e que vem sendo sucessivamente alterado em razão das auditorias por ela realizadas. Um animal para estar regular no Sisbov precisa estar numa propriedade onde todos os animais são individualmente identificados, bem como exista um registro de movimentação de animais e alguns controles de vacinações e alimentação.
A motivação original da UE para introduzir a identificação individual de animais foi a vaca louca, doença que nunca existiu no Brasil. Não teria consistência científica, portanto, a exigência de identificação do nascimento ao abate, pois haveria outra maneira de comprovarmos a inexistência da doença. Este seria um contencioso forte. Contudo, esta não é a exigência atual da UE, e sim a comprovação da permanência do animal por 90 dias em região habilitada como livre de febre aftosa e por 40 dias na mesma propriedade, indicando claramente que a preocupação refere-se à quarentena relacionada à febre aftosa, e não à vaca louca.
Na auditoria realizada em dezembro, novamente constataram-se irregularidades, levando a UE a exigir que o Brasil fornecesse previamente uma lista das propriedades onde estão os bovinos para o abate. A inscrição no Sisbov passou a ser insuficiente para a UE.
Um limite quantitativo de propriedades certamente não teria base científica. Porém cabe ler com atenção o parágrafo da correspondência enviada ao Brasil. "Recomendamos que provisoriamente selecionem um número de propriedades, que possam estar sob o controle efetivo de seus serviços sanitários, dedicando tempo para que finalmente entre em vigor um sistema de controle… Nossa estimativa baseada em avaliação da grandeza do problema e da capacidade de correção é que não poderíamos receber uma lista com mais de 3% das estimadas 10 mil propriedades incluídas no Sisbov." A UE centrou a questão na confiabilidade do sistema, indicando que, baseado no tumultuado passado, esperava receber inicialmente uma lista pequena de 300 propriedades.
Algumas questões foram levantadas como irregulares ante o SPS e, por isso, passíveis de contencioso na OMC. Mas é preciso lembrar que um contencioso demora no mínimo três anos, tempo que atrapalharia ou mesmo interromperia o fluxo comercial, constituindo um irreparável prejuízo mesmo que seu resultado fosse, no final, positivo para o Brasil.
A exigência de lista de propriedades foi colocada pela UE ao Brasil como uma tentativa de resgatar a credibilidade que o Sisbov não apresentava. Os países que implantaram sistemas de rastreabilidade, sem os problemas identificados no Brasil, não possuem esta exigência. O número de 300 propriedades foi apresentado como parte do processo de reconstrução da essencial credibilidade. Um contencioso referente à exigência de lista prévia traria à tona as irregularidades do Sisbov ao longo desses anos. Não vejo interesse nesse tipo de ação.
O Brasil forneceu em janeiro uma lista de 2.700 propriedades prontamente rechaçada, porque com erros; 15 dias depois, outra lista de 600 propriedades também não foi aceita; e agora entregou uma lista com 200 propriedades, que estão sendo auditadas pelos veterinários da UE.
Tivesse o Brasil apresentado este ano uma lista, arrisco dizer, até o dobro das 300 sugeridas, porém 100% confiável, talvez tivesse sido aceita e hoje já poderíamos tê-la ampliado significativamente. Infelizmente, levamos um número muito maior, e pior, não confiável, obrigando-nos a retroceder e comprometendo a credibilidade do País.
Tivesse o Brasil levado uma lista de 2.700 propriedades correta, segundo o Sisbov, com firmeza e segurança, a UE seria obrigada a auditá-la, não podendo rechaçá-la exclusivamente pelo número. Uma recusa baseada no quantitativo poderia ser objeto de um contencioso. Não foi o que ocorreu.
O momento é de reconstruir nossa credibilidade, trabalhando dentro do sistema proposto pelo Brasil e negociando em paralelo um modelo adequado à realidade brasileira, que transmita a necessária segurança, sem exageros ou exigências descabidas.