Está acabando a carne em La Paz. Tanto o frango quanto o boi, ingredientes muito usados na culinária boliviana, já são difíceis de serem encontrados em mercados e restaurantes. Os ovos também escasseiam, assim como algumas verduras, leite e pão. Além disso, acabou a gasolina e o diesel nos postos de combustível, que estão fechados.
Trata-se do último efeito na sede do governo da crise política que se instalou no país desde as últimas eleições, seguidas da renúncia de Evo Morales após denúncias de fraude.
Partidários do ex-presidente, que defendem que o país sofreu um golpe de Estado, bloquearam trechos de estradas para protestar contra Jeanine Añez, senadora de oposição que assumiu o cargo.
Caminhões-tanque e veículos que trazem alimentos, especialmente da região leste do país, estão bloqueados.
Em um grande supermercado do centro, cenoura, cebola e tomate acabaram; leite e pão estão no fim. A geladeira de carnes está totalmente vazia.
Um supervisor conta que até sexta-feira (15) havia ainda algumas opções, e os clientes faziam filas para comprá-las, mesmo com preços mais altos que o normal —o quilo de frango subiu de 13,50 bolivianos (cerca de R$ 8) para 16,50 (R$ 10) e o preço do ovo, que era 80 centavos (R$ 0,50), quase dobrou e foi para 1,50 (R$ 0,90).
“Estocamos uma quantidade de carne em casa. Mas agora está no fim”, diz a dona de casa Nataly Flores, 32. “As pessoas estão recorrendo a comida enlatada, tipo sardinha e atum.”
“Ironicamente lá em Santa Cruz,de onde vem a maioria dos alimentos, os preços baixaram, porque não conseguem escoar os produtos”, diz o marido dela, Ubaldo Jimenez, 42.
Sem matéria-prima, alguns restaurantes fecharam as portas e outros reduziram o horário de funcionamento.
Em um centro comercial, o proprietário de um deles, German Sandoval, 30, não está servindo nenhum prato com frango. O local, que antes abria das 10h às 22h, agora funciona das 11h às 16h apenas.
No momento da visita da Folha, não havia quase ninguém na praça de alimentação, que geralmente lota no sábado à tarde. “Não há clientes. Além de tudo os bancos estão fechando por medo de saques nas manifestações e as pessoas não têm dinheiro vivo.”
O bloqueio do combustível acontece em El Alto, área nos arredores de La Paz que concentra muitos evistas. Na quinta-feira (14), havia filas nos postos. Agora, eles estão fechados, a não ser os que vendem gás natural, ainda disponível.
Mas também houve problemas com esse produto: após a ruptura de um gasoduto perto de Cochabamba e sem poder fazer o reparo devido aos bloqueios, o governo suspendeu o abastecimento de indústrias para garantir o gás domiciliar.
Com tudo isso, taxistas aumentaram o preço das corridas e tornou-se quase impossível conseguir um carro pela Uber. Os contêineres de lixo também estão transbordando, já que sem o diesel não há coleta.
O novo ministro de Hidrocarbonetos, Victor Hugo Zamora, empossado por Añez, disse que solucionaria a crise e dialogaria com o grupo que promove os bloqueios.
Uma solução cogitada por empresários é enviar a carne por ponte aérea, em voos fretados de Santa Cruz para La Paz. Os frangos de um caminhão que a Folha encontrou abastecendo uma lanchonete já tinham vindo de avião,
contou um funcionário.
Segundo Zamora, mesmo depois que as estradas forem desbloqueadas, demorará cinco dias para que o abastecimento seja normalizado. Ele calcula o prejuízo com o desabastecimento em 1,5 milhão de bolivianos (R$ 912 mil) por semana, sem contar as perdas da indústria.
Morador de La Paz, o motorista Johnny Ortega, 55, teve a família afetada duas vezes pelo desabastecimento. A esposa é dona de um restaurante que está fechado há dois dias por falta de ingredientes. Ele dirige um táxi e só tinha gasolina para terminar mais uma jornada de trabalho.
O tanque esvaziou no meio do caminho, e a reportagem da Folha teve que descer e percorrer o restante do trajeto a pé.
Ortega foi junto e disse que voltaria para buscar o carro quando conseguisse gasolina no mercado negro. “Mas nem lá estamos encontrando”, afirmou. “Sou pai de três filhas e preciso garantir minha renda.” Segundo ele, o litro no mercado paralelo custa 15 bolivianos (cerca de R$ 9,10), quatro vezes mais que o valor original nos postos, que era de 3,70 (R$
2,25).
As escolas também estão fechadas há dias. No fim de semana, os protestos deram uma trégua, mas muitos pacenhos dizem estar cansados da falta de normalidade. “Estamos nessas condições: sem carne de boi, sem frango, com as ruas cheias de lixo. Queremos paz. Estou farta”, disse a aposentada Roxana Antequera, 59, que abordou a reportagem chorando e dizendo que precisava desabafar. “Já vivi ditaduras e momentos complicados, mas isso aqui nunca vivi.”