A crise do etanol entrou com alarde na agenda dos três principais candidatos à Presidência da República, nas eleições de outubro. Em documento entregue a Dilma Rousseff (PT), Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB), os usineiros afirmam que “o setor sucroalcooleiro vive a maior crise de sua história”. Nos bastidores, os empresários estão divididos entre os que defendem o apoio em bloco do setor a Aécio Neves e o rompimento com o governo e sua candidata, de um lado, e os chamados de “pragmáticos”, grupo que prefere manter um pé em cada canoa e fazer doações para as campanhas dos três candidatos, como aconteceu nas eleições 2010.
A crise já estava instalada, na eleição passada, mas os usineiros da cana ainda viviam uma espécie de lua de mel com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que os chamava de “heróis nacionais e mundiais”. Graças a essa relação o setor deu mais dinheiro para Dilma (algo em torno de R$ 10 milhões), do que a soma com a qual contribuiu com José Serra (PSDB) e Marina Silva (Rede Sustentabilidade), hoje companheira de chapa de Eduardo Campos (PSB), à época candidata pelo PV.
No momento, os usineiros mais antigos, liderados pela Copersucar, defendem que sejam fechadas as torneiras para a campanha de Dilma; do outro lado estão grupos que atenderam à convocação de Lula para investir no etanol, muito embora, entre eles, também possam ser vistos sobrenomes tradicionais, como os Ometto, mas associado a grupos como a Cosan e a Shell.
A relação de Dilma com os usineiros é complicada desde o tempo da presidente no Ministério das Minas e Energia. À certa altura, Dilma chegou a se considerar “traída” por projeções não cumpridas pelos industriais. A União da Indústria da Cana e do Açucar (Unica) inclusive mexeu em sua direção, na tentativa de restabelecer o diálogo com a presidente. Sem êxito. A entidade também promoveu um evento para ouvir os candidatos sobre a crise. Aécio e Eduardo foram, Dilma cancelou de véspera sua participação.
Recentemente, Dilma retomou contatos com os empresários. Há pouco cerca de 15 dias recebeu Marcelo Odebrecht, que tenta se firmar como um interlocutor com a presidente, e, segundo apurou o Valor, também manteve contato com os Ometto. Hoje, Dilma deve se encontrar em São Paulo com Rubens Ometto Silveira Mello, presidente do Conselho de Administração do Grupo Cosan.
O ponto nevrálgico da crise é o preço da gasolina nos postos de combustível. O etanol só é competitivo quando seu preço equivale a até 70% do valor da gasolina, este virtualmente congelado pelo governo, para manter a inflação sob controle. A defasagem do preço da gasolina hoje é estimada em cerca de 20%.
“Se a situação permanecer incerta e sem perspectivas claras de melhora, será inevitável uma avaliação da continuidade dos investimentos e da operação de algumas unidades”, informou a Odebrecht ao Valor. O grupo possui 9 unidades em operação, com capacidade instalada de moagem de 35,4 milhões de toneladas de cana. Há outras, inclusive multinacionais, de sobreaviso. “Que mercado é esse em que a presidente usa a caneta onde tem interesse para fazer voto?”, questiona o empresário Jairo Menesis Balbo, de uma das mais tradicionais famílias no ramo da cana.
A extensão da crise está dimensionada no documento “Projeto AGORA – Agroindústria e Meio Ambiente”, encaminhado pela Unica aos candidatos São mais de 60 usina fechadas, desde 2008, e de 60 mil empregos queimados no setor produtivo. Num momento em que o país vive um regime de pleno emprego, só nos primeiros seis meses deste ano o setor sucroalcooleiro registrou uma queda de um terço no número de contratações formais, segundo dados do Ministério do Trabalho. Na indústria de bens de capital, fornecedora das usinas, mais de 50 mil postos de trabalho foram comprometidos. É de 50% a queda no faturamento das empresas de bens de capital voltadas para a indústria canavieira, desde 2010.
O preço da gasolina é conjuntura. Os produtores atribuem a crise à falta de previsibilidade das políticas governamentais. Há dez anos eles foram convocados por Lula a investir no etanol e responderam à demanda do presidente. Entre 2004 e 2010, mais de 100 novas plantas industriais foram construídas, levando o número de unidades produtoras a superar o número de 400 empresas. “Apenas os investimentos industriais realizados para a ampliação da capacidade produtiva, desde 2004, são estimados em mais de US$ 30 bilhões”.
Tradicional produtor na região de Sertãozinho, no Nordeste de São Paulo, o centro nervoso da produção de etanol no país, o usineiro Jairo Menesis Balbo resume as aflições do setor: “A gente não quer subsídio. O que a gente deseja é que o governo determine que políticas vai adotar para a matriz energética brasileira”, diz. “Se a intenção do governo for manter tudo como está não tem problema, vamos partir para outra coisa, vamos plantar abobrinha”.
A crise do etanol, sem dúvida, é um dos maiores passivos que Dilma deixará para o sucessor ou para encaminhar em eventual segundo mandato. A presidente é alvo da ira dos usineiros, mas crise tem outros ingredientes além do preço da gasolina. A crise financeira mundial de 2008, por exemplo, pegou o setor alavancado – para atender à convocação de Lula, que para combater os efeitos da mesma crise, a “marolinha”, concedeu uma série de incentivos para a compra e o uso do automóvel que só jogaram contra o etanol e os usineiros.
“A dívida líquida média das empresas do setor supera seu faturamento bruto anual e quase 15% da receita está comprometida com os juros”, diz o documento da Unica. “Um quarto da receita, para 20% das usinas ativas, é utilizada para o pagamento do serviço da dívida”.
Mudanças na legislação melhoraram as condições de trabalho e reduziram a agressão ao meio ambiente, mas também aumentaram os custos dos usineiros, apesar da onda de demissões. Mais de 90% da colheita, em São Paulo, já é mecanizada.
“Hoje o boia-fria está escasso, a cana tomou conta do lugar”, diz José Adilson dos Santos, sem esconder certa nostalgia: ele é filho de um boia-fria que chegou a Sertãozinho vindo de Minas Gerais e trabalhou em uma das usinas de Balbo, primeiro como “podão” – como se chama o facão para o corte da cana e também o trabalhador que o utiliza – e por fim como ensacador de açucar. Santos se criou numa colônia, as vilas de casas e barracões que as usinas mantinham para abrigar seus trabalhadores e boias-frias, virtualmente extintas. Estudou, formou-se em direito e atualmente é subprefeito de Cruz das Posses, distrito de Sertãozinho, a “capital mundial do secor sucroalcoleiro”. Era em Cruz das Posses que chegavam levas de boias-frias vindas de Minas e do Nordeste. A crise fechou quatro usinas ao redor do distrito, desempregando cerca de 2.000 pessoas- sem falar dos “podões” que aos poucos deixaram de chegar.
Gente como Wanderlei Mariano dos Santos, que deixou Minas Gerais em 1982, “uma época boa de serviço”, em direção a Sertãozinho. Wanderlei trabalhou durante 25 anos na usina Albertina, uma das quatro fechadas, ao redor de Cruz das Posses – cerca de 700 empregados chegaram e deram com as portas fechadas. Só conseguiram sacar o FGTS. A usina está liquidação extrajudicial. Isso foi em 2012. Desde então Wanderlei vive de bicos. Não consegue trabalho nem na lavoura porque não está habilitado a manusear uma colhedeira. “Para cortar cana vai precisar de faculdade”, diz Wanderlei, desolado.
Wanderlei é um dos cinco ou seis desempregados que diariamente batem às portas de José Adilson dos Santos para saber das oportunidades de trabalho. Já foi pior e a Prefeitura de Sertãozinho até o ano passado manteve uma frente de trabalho para o pessoal dispensado pelas usinas. A frente foi desativada. A modorra toma conta do lugar e o movimento do mercadinho Ceribelli e Bernazani, onde os “podões” e trabalhadores da usina costumavam comprar mantimentos, caiu pela metade. “O que me afetou muito foi a Albertina”, diz um dos sócios do estabelecimento, José Ceribelli
Há não mais de dois anos, Ceriberlli vendia “três dúzias de podão por mês”. Neste ano, apenas três. O mundo do boia-fria agora é residual. Mas nele também já não cabe um proprietário como João Palmieri, dono de quatro alqueires encravados em meio às terras de uma das usinas de Balbo – eram 12 alqueires quando o pai morreu e a terra foi dividida entre três filhos. De origem italiana, como Jairo Balbo, com quem viveu a infância nas colônias, Palmieri sabe que mais dia, menos dia terá de passar a terra adiante, pois ficou muito pequena para ser viável.
No documento aos presidenciáveis, os produtores registram que os “municípios canavieiros registram queda de arrecadação, com forte deterioração nos segmentos de comércio e serviços”. Sertãozinho é exemplo perfeito e acabado. Em 2012, a participação do município na arrecadação de ICMS do Estado era de 0,41%; hoje é de 0,33%. Há sete anos, o município era a quarta cidade do país em qualidade de vida, segundo o índice Firjan (Federação das Indústrias do Rio de Janeiro) de desenvolvimento municipal. Caiu para o ducentésimo lugar em 2010 e nunca mais recuperou uma posição de destaque. “Antes, a população até esquecia do prefeito. Agora o poder público é pressionado, o cara o perdeu o plano de saúde, tirou o filho da escola particular”, diz o prefeito Zezinho Gimenez (PSDB).
“O etanol tem uma bela história no Brasil”, diz a presidente da Unica, Elizabeth Farina, lembrando-se de que foi a primeira a produção organizada do Brasil depois do Descobrimento. Mas só a partir do choque do petróleo, nos anos 70, que o álcool passou a ser visto como solução para amenizar o impacto da elevação do preço internacional de petróleo na balança comercial e nos rumos da economia brasileira.
É a época do primeiro carro movido a álcool, quando o consumidor era refém compulsório do combustível. O carro a álcool perdeu a reputação, principalmente crises de oferta – este é um dos motivos pelos quais os postos de combustível exibem hoje a palavra etanol. O carro flex devolveu a autonomia ao consumidor. Em 11 anos, mudou o perfil da frota nacional – 90% dos carros nacionais vendidos são flex, e o estoque gira em torno dos 77% do total. “Essa frota é um grande ativo do Brasil e da indústria do etanol”, diz Elizabeth.
Após dois anos de baixa, a fabricação de etanol reagiu em 2013 e atingiu os níveis históricos alcançados entre 2008 e 2010, quando foram registradas as maiores produções, com 27,27 bilhões de litros. Mas o consumo, que em 2009 chegou a 30% do total de combustível vendido no país, hoje está em 16%. A safra de cana-de-açucar também cresceu e deve chegar a 597,1 milhões de toneladas. Mas, segundo a Unica, esse crescimento deve-se a um regime de chuvas propício ao cultivo, aumento da produtividade e renovação de canavias. “Não é uma tendência para os próximos anos, ocorre concomitantemente à deterioração da saúde financeira do setor”.
No documento aos presidenciáveis, os produtores destacam a questão ambiental. Desde o primeiro Proálcool, o país deixou de usar cerca de 350 bilhões de litros de gasolina, o equivalente a US$ 42 bilhões. Diz também que se o país voltasse a usar etanol na proporção de agosto de 2009 – o pico do produto na matriz energética -, haveria uma redução de 505 mortes e de 226 admissões hospitalares por ano, devido a redução da emissão de gases – algo em torno de US$ 30 milhões a menos de custo para o sistema público de saúde. “É poluição de hoje, não do ano 2050”, diz Elizabeth Farina.
A produção de energia elétrica a partir do bagaço da cana é que ajuda o setor a atravessar a crise. Em 2013, a oferta de bioeletricidade representou uma economia de 7% da água dos reservatórios das regiões Sudeste e Centro-Oeste. Também no ano passado a energia vendida à rede respondeu por 12% do consumo residencial total do país, “o equivalente ao abastecimento de oitos milhõs de moradia”. Nas usinas, já representa entre 3% e 4% do faturamento bruto.
Além da cana-de-açúcar ou de sobrenomes italianos, Balbo, Palmieri, Ceribelli e os dois Santos de Cruzes da Posse têm outra coisa em comum: todos acreditam que a eleição será um ponto de mutação para a indústria do etanol. Apesar dos resultados recentes de safra, ninguém acha que o pior já passou. Como diz Adilson dos Santos: “O pior paira”.