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Economia

Dilma e a vizinhança

Diferentemente do período Lula, os ministérios do governo Dilma têm se sentido bem mais à vontade de lançar políticas sem dar a mínima atenção às regras do Mercosul.

Diferentemente do período Lula, os ministérios do governo Dilma têm se sentido bem mais à vontade do que antes para rechaçar propostas da diplomacia ou lançar políticas sem dar a mínima atenção às regras do Mercosul.

Eles chamam o Brasil de “gigante norteño”, o gigante do Norte, e têm fartos motivos de queixas, especialmente no comércio, em que o vizinho colossal cria barreiras ao leite que produzem, ao arroz que vendem e a outros produtos competitivos dessa economia que não chega a 0,5% do Produto Interno Bruto brasileiro. Os uruguaios tiveram de reclamar por alguns anos até que, após uma reunião e uma bronca do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva com seus ministros, acabassem as injustificáveis barreiras no Brasil à água mineral uruguaia. No governo Dilma Rousseff, o caso dos automóveis uruguaios teve solução bem mais rápida.

Bastou que o ministro de Reações Exteriores, Antônio Patriota, relatasse a Dilma as queixas que acabara de ouvir em Nova York do chanceler uruguaio Luis Almagro, para a que a presidente ordenasse ao Ministério da Fazenda excluir os automóveis fabricados no Uruguai da medida que elevou em 30 pontos percentuais o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) dos carros importados. A medida passou a beneficiar carros chineses e coreanos montados ainda com pouco conteúdo local em instalações uruguaias, aplacando as queixas que o presidente e ex-guerrilheiro José Mujica já começava a fazer contra o Mercosul.

A recente gentileza ao Uruguai parece exceção e contrasta, porém, com o sentimento geral despertado pelo governo Dilma entre os países vizinhos. Não é novidade, para os governos do Cone Sul, que sempre houve resistências dos órgãos da administração brasileira contra os apelos do Itamaraty por medidas em favor dos sócios do Mercosul. Agora, porém, diferentemente do período Lula, os ministérios têm se sentido bem mais à vontade do que antes para rechaçar as propostas da diplomacia, ou lançar políticas sem dar a mínima atenção às regras do Mercosul.

Apesar de o discurso seguir o mesmo, em defesa da América do Sul e do Mercosul, Dilma promove uma sutil alteração de política, dando preferência às iniciativas para estender as alianças políticas no continente sul-americano enquanto afrouxa os laços comerciais que ligam os países sócios do bloco comercial criado há 20 anos entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Na próxima reunião do Mercosul, em Montevidéu, a principal medida prática em discussão será a criação de uma lista de exceções à tarifa externa comum, uma licença para medidas protecionistas diferenciais entre os sócios.

O caso do aumento de IPI aos automóveis foi só o mais evidente, na disputa surda por poder na burocracia brasileira. O Ministério da Fazenda decidiu criar a barreira aos importados – com o aval implícito de Dilma – mas só na véspera de anunciar a medida mostrou os detalhes aos ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e da Ciência e Tecnologia. E em nenhum momento houve consulta ao Itamaraty.

Houve preocupação em assegurar que automóveis importados da Argentina e do México fossem poupados do aumento de imposto, mas só porque as montadoras instaladas no Brasil alertaram para os acordos automotivos com esses países, que são parte de sua estratégia de produção e exportação. O Uruguai precisou de intervenção palaciana.

Na falta de empenho real do governo para consolidar a união aduaneira, naturaliza-se o jogo de gato e rato que passou a fazer parte do comércio bilateral Brasil e Argentina. No começo do ano, o governo brasileiro se viu obrigado a criar licenças não automáticas para automóveis importados, e chegou a segurar na alfândega alguns lotes de carros argentinos, para reagir às descabidas retenções de produtos brasileiros na fronteira – provocadas pela política de contenção de importações e atração de investimentos do governo argentino. Na sexta-feira, o jogo passou ao campo dos doces.

Após receber seguidas reclamações de produtores brasileiros, de calçados e alimentos, sobre desrespeito dos argentinos ao compromisso de liberar mais rapidamente as importações, o Ministério do Desenvolvimento repetiu, com carregamentos de doces e chocolates argentinos, o que havia feito com autos: discretamente, inseriu nos procedimentos eletrônicos de importação, a exigência de licenças não automáticas para esses produtos, travando imediatamente os desembarques no Brasil.

As insistentes queixas dos empresários brasileiros foram mais fortes que a decisão de evitar confrontos entre os governos Dilma e Cristina Kirchner a poucos dias das eleições na Argentina, onde esta última é candidata a manter-se no poder.

Por um lado, a nova política do governo Dilma atende à insatisfação do setor privado, que acusava de ideológicas as concessões de Lula aos vizinhos, por outro, cristaliza-se a incapacidade dos governos da região de aproximar suas políticas e práticas, inviabilizando a formação de um ambiente macroeconômico homogêneo, favorável ao planejamento e aos negócios. O comércio, claro, cresce beneficiado pela vizinhança e pelo que resta de liberalização entre os parceiros. Os atritos, inevitáveis, continuam a ser tratados por ações políticas dos governantes, e não por instituições e regras estáveis e comuns.

Sergio.Leo é repórter especial em Brasília e escreve às segundas-feiras – Valor Econômico