Parece a velha piada da boa notícia e da má. O forte volume de investimentos externos, que deve saltar de US$ 26 bilhões de 2009 para US$ 40 bilhões em 2010 e recordistas US$ 50 bilhões em 2011, garante ao Brasil uma folga para pagar os compromissos externos no horizonte próximo, garante Antônio Corrêa de Lacerda, professor da PUC-SP. Mas a moeda brasileira raramente esteve tão valorizada quanto agora, e, mesmo com a recuperação recente do dólar, se comparado o real com uma cesta de 16 moedas dos principais parceiros comerciais, o câmbio real está pior para os exportadores do que antes da crise deflagrada em 2008. Quase 15% abaixo.
As constatações de Lacerda fazem parte de estudo apresentado em seminário promovido pelo departamento econômico do Itamaraty, na semana passada. Vários dos pronunciamentos de pesquisadores em política externa alertaram para o risco de perda de qualidade nas relações comerciais do Brasil com o mundo. Sem mudança de rumos, o período de bonança pode dar lugar a sérias restrições ao crescimento, alertam os pesquisadores. Eles mencionam também a necessidade de uma estratégia para lidar com a emergência da China como potência econômica mundial.
“Ter com a China uma estratégia de defesa comercial (barreiras às importações) é morte garantida”, alertou a pesquisadora Lia Valls Pereira, da Fundação Getulio Vargas. “A estratégia que podemos ter é promover investimentos da China no Brasil e do Brasil na China”, sugeriu. Os estudos de Lia Valls mostram que quase metade da perda de participação do Brasil nos mercados para exportações brasileiras pode ser atribuída à China. Em alguns produtos, como laminados planos grossos para a União Europeia, comutadores para a Argentina ou freezers horizontais para a Colômbia, a China tomou 90% a 100% do mercado do Brasil.
Essa perda ainda é pequena, em termos absolutos, porém, inferior a US$ 1 bilhão em exportações, de um total superior a US$ 100 bilhões. Boa parte do crescimento da China no mercado latino-americano se deu tomando espaços antes ocupados pelos Estados Unidos. O mais preocupante, para os pesquisadores, é a tendência de queda no dinamismo de exportações de maior valor agregado e concentração da pauta exportadora brasileira em commodities, produtos padronizados com preços cotados nos mercados internacionais, como grãos, minério e outras mercadorias de baixo valor agregado.
“Não somos o Chile, não podemos nos especializar em commodities”, alertou Frederico Gonzaga Jayme Júnior, da UFMG. Os economistas lembram que esse setor não atende à grande necessidade de geração de empregos no País. A dependência crescente de produtos com baixo nível de tecnologia agregada e dependentes do ciclo econômico tem de ser enfrentada com estratégias de incentivo à inovação, prescreve ele. Corrêa de Lacerda reconhece que o Brasil não vai deixar de ser um grande exportador de commodities, mas também chama a atenção para a falta de uma política coordenada de atração de investimentos, capazes de aumentar o padrão tecnológico das exportações brasileiras.
Coube ao diretor do departamento econômico do Itamaraty, Carlos Márcio Cozendey, lembrar a discussão, levantada por economistas ligados aos setores agrícola e de petróleo, sobre o potencial das commodities de gerar alta tecnologia, nas demandas aos fornecedores desses setores e na sofisticação dos métodos de exploração dos recursos naturais. Para Corrêa de Lacerda, porém, a disputa entre exportações de commodities ou de bens de mais alto valor agregado é uma falsa questão.
“O grande desafio do século XXI não é abrir mão do que se obteve com as commodities, mas diversificar o processo de aumento das exportações”, recomenda o economista. Pelas projeções de Lacerda, o déficit nas contas correntes do Brasil com o exterior tende a se estabilizar em torno de 2% do Produto Interno Bruto entre 2011 e 2013, e até cair, como proporção do PIB, nos dois anos seguintes.
A questão, diz ele, é aumentar a qualidade dos investimentos diretos estrangeiros que ajudarão o Brasil a cobrir o déficit nas contas externas. O Brasil ainda é, entre os chamados Bric (Brasil, Rússia, China e Índia) o País com maior proporção de investimentos diretos estrangeiros em proporção ao PIB (18% em 2008, em comparação com os 9% da China, que, em termos absolutos, teve US$ 90 bilhões a mais que o Brasil naquele ano). Mas muito desse investimento veio sob a forma de compra de ativos já existentes, não acrescentou nada ou somou pouco à capacidade produtiva local.
Corrêa de Lacerda está entre os que advogam abertamente a mudança no regime de taxas de câmbio, para que o governo intervenha mais decididamente contra a excessiva valorização, como, aliás, faz o governo chinês. A mudança no câmbio, para um valor mais competitivo do ponto de vista da produção de manufaturas, seria um dos argumentos para uma estratégia que ele sente faltar no Brasil: a negociação, com as grandes empresas transnacionais, em torno da maior sofisticação da produção industrial no Brasil.
É sempre bom notar que, apesar do poder de atração da indústria petrolífera, por exemplo, o Brasil vem perdendo mercado para os chineses em dutos e válvulas destinados à exploração de petróleo; e o maquinário agrícola chinês começa a tomar espaço do brasileiro na vizinhança. No México, a aceitação passiva das estratégias das grandes multinacionais deixou o País sem alternativas quando essas empresas cortaram produção em suas fábricas mexicanas, em resposta à crise financeira.
“Nossa estratégia de exportação não está dirigida às grandes cadeias de produção internacionais”, avisa Lacerda. Qualquer estratégia para o futuro deve incluir instrumentos para influenciar as decisões das empresas na localização de seus centros de produção de bens, partes e peças com maior “densidade tecnológica”, defende ele. “Sustentar a balança comercial com bens de baixa densidade tecnológica hoje não é necessariamente desvantagem”, argumenta Lacerda. “Desvantagem é não criar áreas novas de ingresso no mercado mundial”.