Um dos conflitos mais graves entre os sócios do Mercosul acabou discretamente neste ano, sem participação visível do Brasil, e será um trunfo importante na visita que o recém-eleito presidente uruguaio, José Mujica, inicia oficialmente hoje, em território brasileiro. O conflito foi efeito colateral da chamada briga das “papeleiras” – devida à instalação de fábricas de celulose no Uruguai, próximas à fronteira da Argentina, onde ecologistas bloqueram pontes, acusando as indústrias de poluidoras. Além do bloqueio de ponte, a Argentina vinha brecando a liberação de verbas reivindicadas pelo Uruguai.
Em represália pelas papeleiras, a Argentina havia escolhido como alvo justamente um dos poucos avanços registrados no Mercosul nos últimos anos, o Focem, fundo de “convergência estrutural”, destinado a reduzir as assimetrias do bloco. Sem explicação, o governo argentino vetou a liberação de repasses do Focem ao Uruguai – que havia optado por concentrar o equivalente a três anos de verbas a que tinha direito, cerca de US$ 83 milhões, na construção de uma linha de transmissão entre a fronteira com o Brasil (de onde parte uma linha para a usina de Candiota no Rio Grande do Sul) até próximo a Montevidéu.
A eleição do novo presidente levou o governo de Cristina Kirchner a lançar um gesto de boa vontade e retirar os obstáculos no Focem ao Uruguai. A confirmação da sonhada interconexão elétrica (com obras já autorizadas do lado brasileiro) será um dos pontos altos da visita de Mujica, que também anunciará com Lula projetos de conexão ferroviária entre os dois países. Ambos falarão de comércio, mas tentarão manter o tema longe das atenções, porque a agenda, nesse caso, é negativa: o Uruguai se recusa a abrir o mercado ao frango fresco brasileiro e, em represália, o Ministério da Agricultura brasileiro vem dificultando as vendas de leite, carne, pescados e animais vivos.
“Vamos estar, no Brasil, lutando pelo frango de Canelones”, adiantou Mujica na sexta-feira, no Uruguai, mencionando a região onde se concentram os produtores uruguaios temerosos da concorrência brasileira.
A encrenca com os argentinos e essa tentativa de equilíbrio uruguaio entre o protecionismo e o impulso à integração física é um bom resumo dos impasses que paralisaram o Mercosul nos últimos anos, e que põem a utilidade do bloco em questão em momentos como o atual, quando volta à mesa a negociação entre o bloco e a União Europeia para um acordo de livre comércio. Os europeus já enfatizaram, no passado, a importância de um acordo interregional, entre dois blocos. Hoje, diplomatas do continente confessam reservadamente que prefeririam negociar exclusivamente com o Brasil, de mercado mais promissor e governo mais previsível.
Em resposta aos ataques ao Mercosul, o governo costuma lembrar a vantagem brasileira, com sucessivos superávits nas relações comerciais com os sócios. Essa “vantagem” é apontada como, na verdade, uma das deficiências do Mercosul, em um recém-concluído estudo do Ipea, “Integrando desiguais: assimetrias estruturais e políticas de integração no Mercosul”, de André de Mello e Souza, Ivan Tiago Machado Oliveira e Samo Sérgio Gonçalves. Era de se esperar que, como maior economia, o Brasil funcionasse como dínamo comercial, absorvendo produtos dos parceiros e estimulando a produção local, mas são os sócios que compram, em maior quantidade do que vendem, os produtos brasileiros, notam os técnicos do Ipea.
Como fizeram em reunião na semana passada com autoridades argentinas, os brasileiros irão conversar com os uruguaios sobre possíveis projetos de “integração produtiva”, destinados a permitir maior ligação entre os parque industriais do Brasil e dos vizinhos. Esse projeto é sabotado pelas dificuldades para lidar com as chamadas “assimetrias” dentro do bloco, desde as diferenças de políticas macroeconômicas às condições de trânsito de mercadorias.
Como apontam os autores do estudo do Ipea – encontrado na página de internet do instituto sob o nome de “texto para discussão 1477” – o problema de assimetrias entre as economias no Mercosul é mais complexo do que parece pelo discurso oficial. Afinal, também há fortes assimetrias dentro dos próprios países. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita do Maranhão e do Piauí é inferior ao do Paraguai, e o Uruguai tem um PIB per capita superior a 23 das 27 unidades federativas do Brasil (só é superado por São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Distrito Federal).
No Mercosul, o Índice de Desenvolvimento Humano uruguaio é menor apenas que o do Distrito Federal brasileiro. Essas diferenças levam os autores a sugerir mudanças no Focem, para permitir seu uso por empresas privadas (aumentando a eficiência na destinação de recursos) e aumentar a aplicação em áreas de baixo desenvolvimento no Brasil, ampliando geograficamente o alcance dos programas do Mercosul.
O Brasil é, porém, o principal beneficiário da integração comercial proporcionada pelo Mercosul. O bloco “tem produzido maior concentração econômica”, acusa o Ipea, e os ganhos para Uruguai e Paraguai são “pequenos ou inexistentes”, embora seja grande sua dependência em relação aos sócios maiores. Os sócios do bloco já foram responsáveis pela absorção de 50% das exportações uruguaias no início dos anos 2000, e hoje absorvem 30%. O Paraguai depende do Mercosul para 50% das exportações.
No caso do Uruguai, o país reverteu, nos últimos meses, o resultado comercial, e acumulou superávits nas transações com o Brasil, graças às exportações de trigo, autopeças, leite e outros produtos de peso no comércio bilateral. A visita de Mujica, com uma agenda de investimentos, é uma tentativa de sair desse terreno oscilante das relações comerciais e avançar na integração real entre os mercados. Os temores e barreiras ainda existentes no comércio, porém, não estimulam otimismo para os que ainda acreditam no progresso do Mercosul.