Na janela do escritório instalado no nono andar de um prédio em Campo Mourão, cidade de 80 mil habitantes no noroeste do Paraná, José Aroldo Gallassini se anima com os raios e trovões da tempestade que se avizinha. “Pelo amor de Deus, tomara que essa chuva venha”, diz ele, com vozeirão de locutor de rádio e sotaque carregado. “Não chove há mais de 60 dias, não tem mais capim para o gado, não tem mais nada”.
A lamúria tem explicação: a chuva é indispensável para o bom andamento de seus negócios. Além de ser dono de uma fazenda onde produz soja, milho, trigo e gado, Gallassini é presidente da Coamo Agroindustrial, a maior cooperativa da América Latina. Com mais de 22 mil associados, quatro milhões de hectares plantados (área pouco menor do que o Estado do Rio de Janeiro) e cinco fábricas que produzem 1,4 mil toneladas de alimentos ao dia, a Coamo faturou R$ 4,6 bilhões no ano fiscal encerrado em junho deste ano. A receita fez com que a cooperativa alcançasse a 81ª colocação na lista Melhores e Maiores da revista Exame, à frente de empresas como a rede de varejo Magazine Luiza, a fabricante de papel Suzano e a construtora Andrade Gutierrez.
Apesar do tamanho expressivo e dos números positivos, a estiagem não é a única incerteza a rondar a sede da Coamo, que completa 40 anos no fim de novembro. A apreensão dos cooperados também está relacionada à sucessão de Gallassini. “É um homem inteligente, que se cercou de pessoas capazes e transformou a cooperativa no que ela é hoje”, disse o agricultor Moacir Ferri, de 63 anos. “Minha grande preocupação é ter de trocar a atual administração”.
A inquietação tem fundamento. Perto de completar 70 anos, Gallassini ocupa o cargo desde 1975 e sua história se confunde com a da cooperativa. O mandatário chegou a Campo Mourão no final da década de 60, quando era engenheiro agrônomo e foi transferido pela antiga Associação de Crédito e Assistência Rural (Acarpa, que depois mudaria de nome para Empresa Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural) para fazer um levantamento da região. O que encontrou era desanimador. Tratores, por exemplo, só existiam cinco. As poucas fazendas de trigo não eram mecanizadas. O solo vermelho, muito fértil, não era produtivo por causa da acidez. Não por acaso, a cidade era conhecida como a terra dos “três S”: sapé, samambaia e saúva.
Para reverter o cenário, Gallassini implantou uma cultura agrícola. Adotou técnicas que hoje são consideradas corriqueiras para qualquer pessoa interessada em ganhar a vida com agricultura, como curvas de nível e análise do solo. Com as novidades, Campo Mourão passou por uma grande revolução. Os agricultores diversificaram suas lavouras e a produção começou a se multiplicar. O boom agrícola criou um novo problema: a colheita não tinha onde ser armazenada e nem para quem ser vendida. Foi quando surgiu a ideia de criar uma cooperativa. O sistema não era novo para Gallassini, que já tinha estudado o assunto. Ao lado de 79 produtores, ele ajudou a fundar no dia 28 de novembro de 1970 a Cooperativa Agropecuária Mourãoense, que passou a ser chamada apenas de Coamo. O primeiro presidente da associação, Fioravante João Ferri, aceitou assumir o cargo com uma condição: que Gallassini topasse o convite para ser seu braço direito. Vontade atendida, a cooperativa passou a funcionar numa sala alugada de 50 metros quadrados no centro da cidade.
Milhões de toneladas
Os primeiros cinco anos da cooperativa não foram muito palpitantes. As coisas começaram a mudar a partir de 1975, com o falecimento do então presidente. Para seu lugar, Gallassini foi eleito em votação quase unânime. Assim que assumiu o cargo, o executivo desenhou um plano de crescimento que incluía construção de armazéns e expansão para outras cidades. Hoje, os associados da cooperativa contam com 114 entrepostos espalhados por 63 cidades em quatro Estados: Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e São Paulo.
No ano passado, a produção chegou a cinco milhões de toneladas de grãos, equivalente a 3,5% do total do País. “É muita coisa, principalmente porque a produção é pulverizada”, disse José Carlos Hausknecht, consultor e sócio da MB Agro. Além de produzir trigo, soja, milho e café, a Coamo passou a investir em beneficiamento no final dos anos 1970. Ao todo, são cinco unidades que esmagam 2,1 milhões de toneladas de grãos para fazer margarina, gordura hidrogenada, óleo de cozinha, farinha de trigo, farelo, ração e café em pó. A refinaria de óleo de soja, por exemplo, tem capacidade para produzir 660 toneladas ao dia. Os produtos das marcas Coamo, Primê, Anniela e Sollus são vendidos principalmente no Sul do País.
Para aproveitar o bom momento do preço das commodities, a Coamo planeja expandir suas operações. Entre o início deste ano e o final de 2012, a cooperativa vai gastar R$ 200 milhões na construção e reforma de 43 entrepostos, no aumento da frota de caminhões e na ampliação da capacidade da indústria de beneficiamento. Existe até a possibilidade de criar uma marca de ração animal. O crescimento orgânico será acompanhado de possíveis fusões e aquisições. A última delas aconteceu em abril do ano passado, quando a Coamo anunciou o arrendamento da Coagel Agroindustrial.
Com isso, a cooperativa aumentou o seu quadro em 2,5 mil associados e o faturamento, em 10%. Fora do País, a Coamo quer expandir suas vendas para a Europa através da trading da cooperativa que tem sede em Aruba, na América Central. Já nos Estados Unidos, a aposta é a Bolsa de Chicago, principal mercado regulador de preço agrícolas do mundo, onde a Coamo negocia seus produtos há mais de 30 anos. Hoje, cerca de um terço do faturamento de R$ 4,6 bilhões vem do exterior (veja evolução da receita no quadro abaixo). E a cooperativa se orgulha do fato de nunca ter ficado no vermelho desde a sua fundação.
Melhores e Maiores, revista Exame
A Coamo se transformou na maior cooperativa da América Latina com um estilo de gestão à imagem do executivo que os cooperados não pensam em perder: tradicional e, como ele mesmo gosta de repetir, pé no chão. Ao contrário de outras empresas, a cooperativa não costuma fazer empréstimos para financiar seu crescimento. O dinheiro investido no negócio vem dos cooperados, que pagam uma taxa de 1% sobre suas produções para a Coamo. “Somos muito bem capitalizados”, afirmou o presidente da Coamo, que tem quase R$ 1,5 bilhão em capital circulante.
“Isso nos permite comprar grandes volumes e oferecer preços melhores aos nossos cooperados”. Outra característica marcante é a aversão à terceirização. Um exemplo disso é a frota de caminhões. A cooperativa anunciou a compra de 70 caminhões-trem, usados para transportar carga, que se juntarão a outras 380 unidades. “A Coamo não é de terceirizar, é de trazer as coisas para dentro”, disse Gallassini. “Dá mais trabalho, mas sai mais barato”. Mas a chave para o sucesso da cooperativa é a confiança do cooperado. “É preciso que o produtor volte sempre para comprar nossos insumos e deixar a produção para vendermos”, afirmou o executivo.
Colheita quintuplicada
Numa tarde seca, quente e com céu encoberto por uma espessa nuvem de fumaça e poeira vermelha, o agricultor Moacir Ferri observa o vai-e-vem de duas colheitadeiras na lavoura de trigo. Até o final do dia, dois caminhões transportarão mais de 100 toneladas de grãos da fazenda Paraíso. Há 41 anos no campo, Ferri é um dos fundadores da Coamo e conhece os benefícios de ser um cooperado. Quando começou a trabalhar com lavoura, colhia algo em torno de 125 sacos de trigo por hectare. Hoje, são 425 sacos.
O aumento na produção de milho é ainda mais impressionante: quintuplicou, atingindo 2,5 mil sacos na mesma área. A melhoria, segundo ele, é fruto do trabalho de assistência realizado pela Coamo. A cooperativa oferece uma variedade de serviços que ajudam o agricultor a planejar a melhor forma de plantar. Para isso, a associação mantém uma fazenda experimental, onde são testadas diferentes variedades de sementes e a eficiência de novos insumos e máquinas. “No início eu não sabia o que era praga, o que era fungo”, disse Ferri. “Agora eu corrijo o solo, compro inseticida e herbicida certos para minha lavoura”. Ferri também pode recorrer a CrediCoamo, cooperativa de crédito do grupo que tem R$ 700 milhões em caixa. Suas taxas são mais competitivas do que as oferecidas pelos bancos.
O cooperativismo, no entanto, não é sinônimo de sucesso. Alguns investimentos da Coamo não deram o retorno esperado. A cultura de maçã e a criação de suínos são dois exemplos de fracassos. Mas a aposta mais equivocada da cooperativa foi o etanol. A associação decidiu investir na produção já no final do programa Pró-Álcool, criado pelo Governo Federal na década de 1970. A princípio, a ideia deu resultado e a Coamo investiu alto na montagem de uma usina.
Mas logo os problemas começaram a se acumular. Quando a Petrobras deixou de fazer o pagamento, os agricultores aos poucos desistiram do negócio. A Coamo se encontrou numa situação inusitada: foi obrigada a virar produtora de cana para abastecer a usina. Para isso, comprou mil hectares de terras e arrendou outras fazendas. Cerca de 700 ações trabalhistas, reclamações com queimadas, meio por cento de lucro e o declínio do consumo ajudaram os dirigentes a perceber que estavam no caminho errado. “Pensamos ‘o que estamos fazendo aqui?””, afirmou Gallassini. Há 10 anos, na mesma época em que o álcool voltou a ganhar força no País, o negócio foi fechado e as máquinas da usinas e as terras, vendidas. “Às vezes o agricultor leva desvantagem, mas o Gallassini conseguiu atravessar a crise”, disse Gabriel Jort, que também está preocupado com a troca no comando.
A cooperação entre pessoas é tão antiga quanto a humanidade. O cooperativismo como conhecemos hoje, no entanto, surgiu na Europa em meados do século 19 como uma reação ao capitalismo e à revolução industrial. Intelectuais, humanistas e religiosos se juntaram para resolver os problemas da nova classe operária. No Brasil, o movimento desembarcou no final do século 19. De lá para cá, o setor mudou muito. “Não tem mais o sentido de doutrina, de reforma social”, disse Diva Pinho, advogada, economista e professora emérita do departamento de economia Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP).
“É um cooperativismo de resultado, cujo objetivo é produzir de forma eficiente e lucrativa”. O cooperativismo oferece algumas vantagens para o agricultor: eles sempre vão ter um lugar onde comercializar suas produções e conseguem preços melhores na hora de comprar insumos e de vender trigo, soja e milho. “Uma das grandes vantagens do sistema é tornar o pequeno produtor competitivo”, afirmou Hausknecht, da MB Agro. Não por acaso, 80% dos cooperados da Coamo têm propriedades com até 20 hectares.
Filho pobre
Campo Mourão nem sempre teve vocação agrícola. As primeiras notícias da região, do século 18, indicam que o local servia como lugar de descanso para os tropeiros do Paraná. Logo ganharia um nome: Campos do Mourão, em homenagem ao capitão-general Dom Luís António de Sousa Botelho e Mourão, governador da província de São Paulo e que também controlava o Paraná. Com o passar dos anos, o nome do povoado perdeu o plural e a preposição e foi emancipado em 28 de outubro de 1947.
Logo chegaram os primeiros migrantes de São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul em busca de madeira, até então matéria-prima abundante. Com o final do ciclo, surgiram as primeiras lavouras. Hoje, a cidade vive em função da agricultura e da Coamo, que tem 4,8 mil funcionários, pouco menos da metade deles lotados na cidade. Estudo da cooperativa indica que 30% dos habitantes dependem diretamente do negócio. A loja da fabricante de máquinas New Holland é um exemplo disso. Em 12 anos, vendeu dois mil tratores e mil colheitadeiras – acima da média, de acordo com o gerente da Loja. “Se o agricultor é cooperado da Coamo ele já tem meio cadastro aprovado”, disse Marcos Mazzardo.
Natural de Brusque, em Santa Catarina, Gallassini cresceu dentro da fábrica de móveis do pai. Apesar da influência, sempre sonhou em trabalhar no campo. Criado numa família com 12 irmãos, pegou no batente pela primeira vez aos 13 anos para pagar suas contas e ter independência. Cinco anos depois, mudou-se para Curitiba para fazer exército e um curso de agricultura. Lá, trabalhou na rodoviária, em bancos e numa empresa que fazia cálculo topográfico.
Formado em engenharia agrônoma pela Universidade Federal do Paraná, prestou concurso para trabalhar na empresa de desenvolvimento rural Acarpa e foi transferido para Campo Mourão. Casado há 41 anos e pai de duas filhas, acorda todos os dias às seis horas da manhã para fazer exercícios. Uma hora depois, já está despachando na sua mesa, antes do início do expediente na sede da Coamo. Apesar da idade, trabalha 12 horas por dia e ainda encontra tempo para caminhar sete quilômetros na associação dos funcionários e para frequentar o Rotary Club. Nos finais de semana, nada de descanso: vai até sua fazenda de dois mil hectares para podar o pomar e dar uma olhada nas 2,2 mil cabeças de gado.
Apesar da disposição, Gallassini admite que está em busca de um sucessor. Quando o assunto surge no escritório com paredes cobertas por mais de 20 títulos de cidadão honorário, o bom humor e as brincadeiras dão lugar a um semblante sério. Conta que a liderança de uma cooperativa se assemelha a uma empresa familiar. “A administração não passa de três gerações”, disse o executivo.
“Aquela história de pai rico, filho nobre, neto pobre já está chegando a filho pobre”. E logo lembra o caso de grandes empresas familiares que, nos últimos anos, foram compradas pelas concorrentes, como a Sadia. Se está preocupado que o mesmo aconteça com a Coamo? “Não, estamos preparando novas lideranças para assumir o meu lugar”, afirmou. Gallassini não estipula uma data para deixar o cargo. Por ora, isso só vai acontecer em duas situações: quando perceber que os cooperados não o quiserem mais ou se ficar doente. Quando deixa o escritório após um dia cheio e atrasado para o próximo encontro, o executivo tem uma coisa a menos com o que se preocupar. A chuva que molha o asfalto é um sinal de que já está quase na hora de plantar a próxima safra.