O Brasil já começou a combinar com os russos. E quer jogo no mesmo time. Ainda em fase de ensaio, a coordenação entre os chamados Brics, Brasil, Rússia, Índia e China, conseguiu, até agora, que autoridades desses países intensifiquem contatos, e, aparentemente, criem maior confiança para acertos bilaterais. Neste ano, por exemplo, Brasil e Rússia podem ter uma mudança qualitativa no relacionamento. É o que defende o ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger.
Mangabeira tem papel inusitado no governo. Transita por vários ministérios, causa desconforto em alguns deles por sua audácia e sua agitação intelectual. Nem sempre é brindado com os melhores adjetivos no Palácio do Planalto. Mas, indiferente a críticas, diz que seu papel é provocar, promover ideias no governo. E provoca, agita, articula, acaba, por sua movimentação e persistência, garantindo destaque, nas reuniões do governo, a temas da agenda nacional e internacional que arriscavam deter-se nas encruzilhadas entre diversos ministérios.
O Itamaraty já vem, há algum tempo, tratando da ampliação do relacionamento com os russos, que tem, como estrela, a cooperação científica e tecnológica, especialmente na área espacial. Há uma comissão de alto nível, presidida pelo vice-presidente José Alencar, que deve se reunir em julho e discutir parcerias entre Petrobras e a estatal russa Gazprom, além de se fazer acompanhar por uma missão comercial, em busca de parceiras no mercado local.
No terreno do comércio, a pauta ainda é prisioneira das commodities, que ocupam a esmagadora porção das trocas de mercadorias entre os países, mas, há algum tempo, a possibilidade de venda de jatos russos para o programa FX, da FAB, somou à agenda um componente militar e industrial.
Esse componente militar garantiu a presença de mais um interlocutor nessas discussões, o Ministério da Defesa. Mas o pragmatismo comercial dos russos minou as chances, no ano passado, de participação dos caças Sukhoi na concorrência aberta pela FAB. O ministro da Defesa, Nélson Jobim, queixou-se, na época, que, enquanto os franceses abriram portas para cooperação e transferência de tecnologia, os russos pareciam vendedores obcecados, de prateleiras cheias. O Brasil avançou nas negociações com a França, que passou a ser mais cotada para vender os aviões à FAB.
Agora, os Sukhoi voltaram à cena, garantem fontes diplomáticas brasileiras. Mangabeira não acredita na chance dos jatos russos na atual disputa, mas diz ter sentido mudanças na abordagem das autoridades locais, que oferecem à Embraer possibilidade de cooperação no desenvolvimento de caças de quinta geração. O ministro esteve na Rússia, há duas semanas, para encontro com autoridades dos Brics ligadas ao planejamento estratégico. E aproveitou para um giro, sempre acompanhado de representantes da embaixada brasileira, em gabinetes do alto escalão moscovita.
Após reuniões com Igor Sechin, vice-primeiro ministro e dirigente da estatal de petróleo Rosneft, e com Igor Shuvalov, que encabeça o time de vice-primeiros ministros, Mangabeira acredita que a Rússia já não trata o Brasil como uma potência de alcance regional e incluiu o país na lista de interlocutores para assuntos globais. Na discussão dos Brics, diz, são Brasil e Rússia os países com ideias mais próximas em relação à estratégia para lidar com a perda de influência do dólar como moeda de referência mundial – Índia e China mantêm posições bem mais tímidas, ainda que os chineses já tenham levantado a discussão.
“Queremos, Brasil e Rússia, respostas à crise focadas em bases reais, não só nos problemas do mercado financeiro”, diz Mangabeira. Ele prevê ações conjuntas em campos como propriedade intelectual, onde vê alternativas ao sistema de patentes, com projetos estatais e cooperativos de remédios e tecnologia médica, por exemplo. “O grande tema atual é a reinvenção, não a reforma, da economia de mercado, por experimentalismos institucionais”, diz.
É forte a possibilidade de uma visita do presidente Lula a Moscou no segundo semestre, algum tempo depois da visita já programada à Rússia, para o encontro dos Brics em Ecaterimburgo, amanhã. Em comércio, dois temas ganham força. Um é o aumento de importação de trigo russo, que poderá substituir parte do incerto trigo argentino. Outro tema é a instalação, no Brasil, de fábricas de fertilizantes, com nitrogênio vindo da Rússia e fósforo e potássio brasileiros. Os fertilizantes são 40% do custo agrícola, e a Rússia, grande fornecedor.
É um tema importante, no momento em que, desconfiados, os exportadores russos vêm exigindo dinheiro à vista e recusam cartas de crédito de bancos internacionais na venda de fertilizantes para produtores brasileiros. As compras de fertilizantes estão em queda, anunciando perdas na produtividade rural.
Igor Sechin se prontificou a vir em breve ao Brasil liderando uma missão empresarial, para discutir alternativas de negócios, diz Mangabeira. Ele faz questão de dizer, porém, que essa aliança é pragmática, não deve ser vista como nenhum tipo de confronto com os EUA.
Essa aproximação com a Rússia tem, além das incertezas do trato com os mandantes locais, outras dificuldades. A revista britânica “The Economist” sugeriu, em sua penúltima edição, que os Brics passem a ser chamados BIC, sem a Rússia, ameaçada de estagnação econômica. A imprensa internacional fala do tombo de 15% na produção industrial e de quase 10% no PIB do primeiro trimestre, fatal a muitas cidades de uma indústria só.
Já faz mais de meio século a folclórica preparação do time brasileiro para o jogo contra a União Soviética, na Copa do Mundo de 1958, quando, após ouvir todo o esquema tático concebido pelo técnico Feola, Garrincha perguntou: “Mas o senhor já combinou com os russos?”. Hoje, enquanto avançam as conversas com a Rússia, o que falta combinar são os efeitos da crise internacional sobre o país, que sofre as consequências da queda nos preços de petróleo.
Sergio Leo é repórter especial em Brasília e escreve às segundas-feiras