Uma pesquisa conduzida pela ONG Proteção Animal Mundial e realizada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) no mês de setembro no Paraná e identificou a presença de genes de resistência a antibióticos nos solos e nas águas nas imediações das granjas em duas áreas: região dos Campos Gerais e no Oeste do estado.
O material coletado mostrou uma presença especialmente grande de genes resistentes a antibióticos críticos para a saúde humana, como é o caso da cefalosporina, da ciprofloxacina e da penicilina.
As informações sobre a pesquisa estão reunidas no relatório “Bactérias multirresistentes: em um rio próximo de você” divulgado nesta terça-feira (7/12) em evento virtual (veja aqui) com participação de representantes das duas entidades e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Proteção Animal Mundial e Idec também lançaram no encontro o documento “Como evitar a próxima catástrofe sanitária: resistência antimicrobiana” com análises e recomendações de políticas públicas relativas ao problema mais amplo, abrangendo saúde humana e animal, da resistência de bactérias causadoras de infecções contra os tratamentos atualmente disponíveis.
Atualmente, estima-se que 75% da produção mundial de antibióticos se destine ao uso em animais de produção, o equivalente a 131 mil toneladas anuais do medicamento. O uso em excesso e indiscriminado pode acelerar o desenvolvimento de bactérias multirresistentes nos animais e no meio ambiente.
Segundo a pesquisa, apenas 68% dos entrevistados já ouviram falar sobre o uso excessivo e inadequado de antibióticos e sua contribuição para o crescimento da resistência bacteriana. Dados divulgados apontam que 40% das pessoas acreditam em partes ou não acreditam que há impactos negativos em seres humanos devido ao uso inadequado de antibióticos em animais e desconhecem os riscos atrelados ao uso abusivo de antibióticos, nas granjas que cercam as pequenas comunidades locais.
O Brasil ocupa a quarta posição no ranking de produção de carne suína no mundo, com 3,88% da produção global. Do que é produzido (649.382,28 mil toneladas), 16% têm destino internacional, sendo a região Sul do País a maior produtora e exportadora. Responsável por 66% da produção nacional e quase que pela totalidade das exportações de carne suína, a região tem como maior destaque o estado de Santa Catarina. Os principais destinos hoje são China, Hong Kong e Chile, de acordo com o Ministério da Economia, Indústria, Comércio Exterior e Serviços.
O crescimento da resistência antimicrobiana (RAM) em animais de criação é considerado pela ONU um risco potencial para novos surtos de doenças. De acordo com o gerente de Agropecuária Sustentável da Proteção Animal Mundial, José Rodolfo Ciocca, a entidade quer mostrar os impactos do uso excessivo de antibióticos na produção animal. “O estado do Paraná é um dos principais ‘players’ do cenário brasileiro, um dos grandes estados produtores de aves e suínos e a produção está muito concentrada, principalmente no oeste do estado”, explicou.
O sistema industrial intensivo para a produção de proteína animal gera grande volume de dejetos. Quando mal manejados pela granja, eles podem impactar o ambiente ao contaminar a água, solo e alimentos.
Problema global
A pesquisa feita no Brasil e que está sendo divulgada agora já teve etapas anteriores, que incluíram análises idênticas com resultados muito similares, realizadas no Canadá, Espanha, Estados Unidos e Tailândia.
O médico-veterinário e coordenador de Bem-Estar da Proteção Animal Mundial, Daniel Cruz, explica que a resistência antimicrobiana vem crescendo muito. “Sabemos desse problema global da resistência bacteriana. As bactérias criam resistência contra antibióticos e com isso causam doenças difíceis de serem tratadas. Trazendo para a realidade da produção suína, são utilizados de forma oral, na água ou na ração, em doses baixas para prevenir que estes animais fiquem doentes. Uma outra forma de utilização, que é muito controversa, já provada que também favorece a resistência antimicrobiana, é a utilização dos antibióticos como promotores de crescimento. São antibióticos usados em baixa dosagem, para modular a flora intestinal para que o animal tenha uma maior eficiência na conversão alimentar”, destacou.
Cruz aponta ainda que estas duas formas de utilizar os antibióticos, tanto na forma profilática (preventiva), como promotora de crescimento, propiciam muito que estas bactérias venham a apresentar resistência aos antibióticos que estão sendo utilizados. “O objetivo de qualquer produção animal é aumentar a eficiência e a conversão alimentar. O uso correto dos antibióticos, de forma terapêutica, é a mais correta e, assim, minimizaríamos a possibilidade de as bactérias criarem resistência”, disse.
Para Cruz, a solução é desenvolver e implementar políticas e normas para empresas e governos. “Precisamos utilizar os antibióticos de forma responsável, uso apenas terapêutico e banir o uso rotineiro de antibióticos. Vejo que a principal solução é melhorar de forma robusta a maneira como os animais são produzidos. No sistema industrial intensivo, o antibiótico acaba sendo um produto inerente devido as práticas e manejo utilizados”, afirmou. “Acreditamos que essas engrenagens têm que se movimentar de maneira conjunta para atender esses pedidos que estamos fazendo”, disse.
“No Brasil já temos alguns antibióticos proibidos como promotores de crescimento, mas ainda é preciso estudar para ver o que seria viável, além de acompanhar o que vem sendo feito no exterior. O Brasil já deu um primeiro passo e a tendência é caminhar para o fim do uso de antibióticos como profiláticos e promotores de crescimento”, afirmou. “Temos que ficar atentos, principalmente às exigências internacionais, como na Europa, pois lá há políticas de proibição bem mais rígidas”, explicou.
O médico-veterinário e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Marcelo Beltrão Molento, detalhou os riscos sobre a baixa qualidade da água em alguns locais no Brasil e a insuficiência no seu tratamento. “Este fato também gera graves consequências. Cidades como um todo e hospitais também influenciam no aparecimento de bactérias resistentes na água de rios, com as bactérias saindo na nossa torneira também”, alertou. “Por isso, essa iniciativa vinda da Proteção Animal Mundial tem uma amplitude no mundo inteiro e o trabalho foi muito oportuno, pois verificamos águas e ambientes contaminados como um todo”, afirmou.
Molento apontou que o estudo apresentado ainda está em processo de identificação das bactérias encontradas. “Este será um resultado inédito no mundo inteiro e vamos divulgar de forma ampla, além da Ciência, mas para toda a sociedade. Já encontramos cinco ou seis bactérias com mutações. Vamos divulgar a listagem das mutações presentes para, assim, definirmos qual é o futuro e nossas alternativas de atuação, visando até a melhoria do Plano Nacional de Qualidade de Água”, disse. “Os resultados devem passar para um âmbito nacional e internacional e é preciso reforçar políticas públicas para essa demanda que está muito clara, acima de tudo com educação e consciência”, disse.
Ele apontou ainda a necessidade de uma nova política sanitária, mais rígida. “Possivelmente mudando o sistema de criação animal. Não basta só ‘limpeza, limpeza e limpeza’, precisamos de mais estudos e um novo jeito de produzir visando a questão de saúde única. Educação e consciência para fazermos com que essa necessidade chegue nas políticas e no governo”, apontou. “Temos uma certeza: temos ferramentas para controlar esse problema que é secular, temos o desenvolvimento de novas terapias interessantes, ligadas à Organização Mundial da Saúde e estamos trabalhando com nanotecnologia e estudos de RNA. Creio que tenhamos em breve novas gerações do grupo de antibióticos e terapias completamente alternativas para o enfrentamento dessa realidade”, destacou. “Bactérias sofrem mutações desde sempre, mas precisamos definir as linhas de ações para a convivência equilibrada com o atual sistema produtivo de suínos e com a manutenção da saúde da população”, afirmou.
Uso de medicamentos e as fake news
O advogado e analista de Saúde do Idec, Matheus Falcão, analisou também a importância do uso racional de medicamentos. “Temos alguns desafios pela frente, como por exemplo, como assegurar uma prescrição adequada, como assegurar a promoção da boa informação sobre o uso racional de antibióticos, como lidar com as ‘fake news’ sobre o uso de medicamentos, incluindo antibióticos e como assegurar que antibióticos estejam disponíveis para usuários”, disse.
“Vivemos em um cenário com desafio tecnológico, baixa produção de antibióticos, desinteresse da indústria farmacêutica privada em produzir, com baixa inovação de antibióticos e falta de investimento”, apontou Falcão. Ele acrescenta que o uso de antibióticos deve ser contido, para tratamentos de curta duração, e que só assim será possível trilhar os caminhos para enfrentar a resistência antibacteriana, promovendo eficientes regulação e fiscalização, com uma política pública de inovação tecnológica e capacitação.
“Vivemos em meio a um desafio global de produção de antibióticos. O problema é buscar um modelo de inovação, com a criação de um novo tratado sobre pandemia e como ela se insere nessa discussão. Muita coisa precisa ser modificada nesta questão estrutural”, analisou Falcão. “O antibiótico correto deve ser prescrito pelo profissional de saúde, a população e os produtores devem ter o acesso aos corretos caminhos para sua saúde. Não podemos esperar que as pessoas mudem sua forma de se alimentar. Esse debate envolve um conjunto socioeconômico de ações e não somente responsabilizar. São necessárias políticas mais amplas”, finalizou.