O dia três de janeiro de 1988, um domingo frio e nublado, marcou a minha chegada em Cambridge para iniciar o meu doutorado na área de bem-estar de suínos. A primeira cátedra de bem-estar animal tinha sido iniciada em 1986 com a contratação do Donald Broom, pela Universidade de Cambridge. Eu fui o quarto estudante admitido no novo programa, o primeiro estrangeiro e o primeiro com formação em veterinária. O tópico do meu doutorado era para abordar formas de mensurar e reduzir estresse em suínos, área que continuo pesquisando, 25 anos depois. Quando cheguei em Cambridge trazia comigo uma vontade muito grande de fazer diferença. A suinocultura tem feito parte da minha família durante toda a trajetória no Brasil. O meu bisavô chegou ao Brasil em 1890, vindo de Cesiomaggiore, na região do Veneto, Itália. Na verdade, quando encontrei os antepassados em Cesiomaggiore descobri que eles também trabalham com suinocultura. O meu avô paterno terminava suínos. Comprava os animais nos pinhais da região da serra no Rio Grande do Sul para terminação e foi um dos primeiros a garantir o seu negócio utilizando vacina contra a Peste Suína Clássica (PSC). O meu pai estudou suinocultura no curso técnico em Tupancireta (RS) e foi premiado com um casal de suínos pelo seu desempenho de destaque no curso pioneiro daquela instituição nos anos 1950. Com meu avô materno meus pais iniciaram uma suinocultura moderna para a época, nos anos 1960, com mais de 200 fêmeas em produção, no município de Paim Filho (RS). Minha família voltou a investir em inovação em suinocultura com o estabelecimento da unidade pioneira no Brasil de produção de suínos ao ar-livre nos anos 1980, que despertou o meu interesse em bem-estar animal e abriu portas para o meu doutorado em Cambridge.
A suinocultura também marcou minha trajetória acadêmica e profissional de uma forma bem importante. O meu trabalho com suínos, na feira de ciências, no município de Paim Filho me levou para a competição regional em Lagoa Vermelha e estadual em Caxias do Sul, quando eu tinha 12 anos, minha primeira viagem sem meus pais. Na verdade, o trabalho do consórcio que elucidou o genoma do suíno, publicado em dezembro, me lembrou os ensinamentos sobre domesticação que aprendi aos 12 anos quando eles determinaram o distanciamento de quase 1,000,000 de anos do javali asiático e do javali europeu. Eu lembro também que naquela época existia muita informação equivocada sobre a carne suína e a saúde humana. No meu curso de técnico em pecuária, na ETA em Viação, fui um dos estagiários no setor de suinocultura e também doamos reprodutores Duroc para a ETA, no final dos anos 1970. Durante o meu curso de veterinária, tive a oportunidade de estagiar com um grupo fantástico da Associação de Criadores de Suínos do Rio Grande do Sul (Acsurs), em Estrela (RS), aprendendo sobre inseminação artificial em suínos. Eu ajudei minha família com a unidade de suínos ao ar-livre, e tenho orgulho de minha participação na Associação Brasileira de Veterinários Especialistas em Suínos (Abraves), nos anos 1980. Dei consultoria para vários suinocultores quando trabalhei no então Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamor. Tive também uma passagem muito interessante na Associação de Crédito e Assistência Rural de Santa Catarina (Acaresc), em Florianópolis, prestando consultoria para a implementação da estratégia da empresa no ano de 1986-1987, na avaliação do sistema de produção de suínos ao ar-livre.
Vocês devem estar se perguntando quanto tempo vai durar esta minha “viagem ao passado”. Eu só apresentei o meu breve histórico para tentar convencê-los de que trago a suinocultura no meu DNA e, na minha interpretação, suinocultura só existe porque existem suinocultores. Estamos muito equivocados por não incluirmos produtores em discussões sobre o bem-estar animal e os produtores estão equivocados por ausentarem-se do debate nesta área. No debate sobre bem-estar na suinocultura os produtores não são bem representados no mundo inteiro. Os suínos influenciaram o desenvolvimento da civilização moderna. Dados arqueológicos indicam que foi a domesticação de suínos, a mais de 8000 anos, que motivou tribos nômades a estabelecerem-se de forma sedentária, catapultando o desenvolvimento das primeiras “cidades”. A origem de cidades gerou uma revolução social e cultural.
Voltando a minha chegada em Cambridge, eu gostaria de lembrar que há 25 anos a área de bem-estar animal estava começando a solidificar as credencias cientificas, que hoje são equivalentes a qualquer disciplina acadêmica.
Eu gostaria de apresentar um breve histórico da área de bem-estar animal. Tudo começou com o Comitê Brambell (1965) com o conceito que evoluiu para a definição atual das cinco liberdades. Para garantir o bem-estar os animais devem estar: a) livres de sede, fome e desnutrição pelo acesso pleno a água de boa qualidade e uma dieta para manter saúde e vigor; b) livres de desconforto com acesso a um ambiente apropriado, incluindo abrigo e uma área de descanso confortáveis; c) livres de dor, lesões e doenças através de medidas de prevenção, diagnóstico rápido e tratamento quando necessário; d) livres para expressar comportamento normal, através do acesso a espaço suficiente, instalações adequadas e a companhia de animais da mesma espécie; e) livres de medo e estresse, assegurando condições e tratamentos que evitem o sofrimento mental.
Os pesquisadores Duncan e Fraser (1997) resumiram os esforços dos cientistas para monitorar o bem-estar animal os dividindo em três escolas de pensamento. Segundo Duncan e Fraser (1997) as escolas de pensamento que agregam os cientistas que trabalham em bem-estar animal podem ser definidas da seguinte forma:
1) Escola que estuda bem-estar animal através de uma abordagem da função biológica, incluindo aspectos positivos bem como o comprometimento da funcionamento normal. Nesta escola marcadores fisiológicos como glicocorticóides (cortisol, corticosterona) (Schonreiter et al.,1999 a e b), hormônios peptídeos (ACTH, beta-endorfina) catecolaminas (dopamina, noradrenalina e adrenalina) são mensurados em condições sem distúrbios e em condições de teste. É fundamental a observação dos ritmos circadianos, particularmente dos glicocorticóides. Também marcadores do sistema imunitário, como respostas a desafios de antígenos, concentração plasmáticas de citoquinas têm sido utilizados. Efeitos de situações de desafio na organização de sistemas no cérebro têm sido a minha maior contribuição na área de bem-estar animal (opióides endógenos, neurotransmissores, mudanças estruturais entre outros) (Broom e Zanella, 2004). (…)
No Brasil certas pessoas perpetuam conceitos equivocados que tem comprometido a aproximação de produtores e entidades de produção com a ciência do bem-estar animal. Esta política de negar a necessidade de discussão sobre o assunto é extremamente problemática. O mundo opera em uma velocidade na transferência de informações que não era possível imaginar quando eu sai do Brasil a 25 anos atrás. O Brasil é um gigante na produção de alimentos e é também um gigante respeitado pela capacidade de inovação no setor. Este gigante tem que adequar sua posição com uma abordagem equilibrada na área de bem-estar animal.
A indústria e o bem-estar animal
Três assuntos vão definir a sobrevivência e sustentação da suinocultura no mundo nos próximos 20 anos. O primeiro dele é a questão ambiental. É fundamental que respostas objetivas sobre a contribuição dos processos produtivos na saúde ambiental do planeta sejam obtidas. Formas de minimizar as “pegadas/rastros de carbono” (“carbon footprint”) e impacto ambiental são muito importantes. Em segundo lugar questões pertinentes à segurança alimentar, vão mapear os países e produtores vencedores. Em terceiro lugar considero que a temática do bem-estar animal e a aceitação dos processos produtivos com relação às formas de manejo, alojamento, transporte, abate entre outros, também vão contribuir de forma decisiva para a sustentabilidade da suinocultura mundial.
O debate em relação ao bem-estar animal tem dividido a indústria não só no Brasil como no mundo. Qual é a posição da indústria de suínos no Brasil na temática de bem-estar animal?
A indústria suinícola brasileira não é diferente da de outros países. É uma indústria extremamente competitiva, porém conhecedora das flutuações do mercado e das incertezas que são características da produção de suínos. Com muito empenho, a indústria brasileira tem buscado alternativas para se adequar às normas de bem-estar animal discutidas nos países europeus. É inegável, no entanto, a preocupação com os custos associados à adequação aos critérios de bem-estar animal. Em algumas áreas, como por exemplo, o abate de animais, a indústria brasileira de exportação é referencia mundial. Em outras áreas, como alojamento de fêmeas suínas no período de gestação, a indústria nacional ainda não adotou uma postura definitiva e clara. (…)
Conclusões
Alguns segmentos da indústria consideram, de forma equivocada, a temática do bem-estar animal como modismo que logo passará. Com esta abordagem questões muito importantes têm sido simplificadas e, de certa forma, vulgarizadas pela abordagem superficial. Por outro lado, segmentos ligados a entidades com agendas extremas relacionadas à proteção e direito dos animais também vulgarizam e simplificam a importância da produção animal no contexto econômico, social e, de uma forma geral, no bem-estar da população humana. É inegável que governos, em alguns países, utilizam o bem-estar animal como barreiras protecionistas de mercado, em algumas situações escondendo ineficiências no sistema produtivo.
Mesmo ciente da veracidade parcial de todos os cenários apresentados acima, concluo, e a sociedade apóia a minha conclusão, de que é imperativo que a temática do bem-estar animal seja estudada com a complexidade que ela apresenta. As condições de manejo, alojamento, nutrição, transporte, abate e a relação homem-animal precisa de um enfoque que incorpore medidas de bem-estar animal. O fato de que os animais, em especial os suínos, demonstram capacidade de manifestar dor, frustração, medo e também emoções positivas os fazem merecedores de um tratamento digno e diferenciado. O nosso compromisso moral com animais que são fonte de alimentação, utilizados em pesquisas cientifica, fontes de fibra, trabalho e lazer é parte do contrato moral que assinamos, metaforicamente, durante o processo de domesticação.
Concluo de forma pragmática e decisiva de que o alojamento de fêmeas suínas em celas de gestação não e sustentável. O sistema – mesmo os mais bem manejados – oferece desafios que a biologia dos animais não consegue se adequar sem comprometer aspectos fundamentais para o bem-estar. Produtores têm um papel importante para facilitar uma transição para sistemas sustentáveis, que permitam a manutenção da competitividade da cadeia de produção de suínos.