O Brasil precisa olhar com mais atenção para os países do leste asiático. Esta região do Pacífico está se transformando no grande polo da globalização, papel anteriormente ocupado pelos mercados da área atlântica. A grande referência deste processo é a China. O gigante asiático segue sendo fundamental para o mundo. Hoje, reponde por 1/5 da população do planeta e ocupa a posição de segunda maior economia mundial, com a perspectiva de ser a primeira em um curto espaço de tempo.
O governo chinês vem negociando uma série de acordos com norte-americanos, europeus e com vários outros países da Ásia. Iniciou também um processo de implantação de profundas reformas no país, entre as quais uma inédita abertura – ainda que pequena – de sua economia para investidores estrangeiros. Está em curso ainda um gigantesco processo de urbanização coordenado pelo próprio governo que deve levar do campo para as cidades um contingente de 300 milhões de pessoas nos próximos dez anos.
O Brasil parece não ter acordado ainda para todas estas transformações que estão ocorrendo naquela região e no mundo todo, e nas oportunidades que podem gerar. Nos últimos anos, o país não negociou nenhum acordo comercial importante e adotou uma política de favorecimento ao mercado interno com um alto nível de proteção. “É preciso repensar esta política e abrir mais o país à competição. O Brasil ficou muito parado e chegamos a um ponto que necessitamos de uma estratégia de reforma. As coisas estão mudando [no mundo] e temos de nos reposicionar”, afirma o embaixador Clodoaldo Hugueney.
Entre os anos de 2008 e 2013, Hugueney esteve à frente da Embaixada do Brasil em Pequim. Retornou ao país em fevereiro, quando assumiu a coordenação do Centro de Investigação Laboratório do Século XXI, na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Nesta entrevista, ele dá um panorama sobre as transformações econômicas e sociais na China, discute as novas bases em que estão sendo discutidos os atuais acordos comerciais e a relação Brasil-China. Confira os principais trechos.
Suinocultura Industrial – O senhor permaneceu à frente da embaixada do Brasil na China entre os anos de 2008 e 2013, período em que o comércio entre os dois países avançou bastante. Inclusive, com a remoção de barreiras à importação da carne brasileira. Como foi este processo de negociação, principalmente com relação às carnes?
Clodoaldo Hugueney – Desde que cheguei à China, identifiquei que o setor de carnes era prioritário na relação comercial entre os dois países. Intensificamos muito o diálogo com as autoridades chinesas por meio de um trabalho conjunto, no qual participaram empresas brasileiras do setor e o Ministério da Agricultura. Conseguimos com isto eliminar rapidamente diversas restrições existentes. Esta estratégia traçada desde minha chegada ao país possibilitou que os chineses aceitassem o sistema de regionalização na área de carne bovina. Em frango, permitiu a liberação de um número maior de estabelecimentos exportadores, fazendo com que o Brasil se tornasse o principal fornecedor chinês. E na área de suínos, que estava fechado, foi possível abrir o mercado. Hoje, a situação é muito diferente. Vivemos um processo de agregação de novos estabelecimentos aos já credenciados a exportar. É um processo lento, que tem toda uma parte burocrática, mas é um processo regular. Missões vêm ao Brasil e remetem seus relatórios. É uma situação muito melhor do que tínhamos anteriormente.
SI – Pelo que o senhor comentou, é um trabalho que exigiu grande mobilização do setor produtivo e do governo brasileiro.
Hugueney – Realmente; ele demandou um intenso diálogo e forte mobilização entre governo e setor produtivo de carnes. O esforço conjunto de ambos foi importante junto ao governo e setor produtivo chinês. Não se pode esquecer que a China é uma gigantesca exportadora agrícola. A sua agricultura é a maior do mundo. E os chineses também têm interesse em vender produtos agrícolas para o Brasil. Acho que o país deveria estabelecer uma negociação visando avaliar quais produtos poderíamos importar da China na área agrícola. Isto facilitaria o processo de habilitação de novas plantas industriais, assim como abriria a possibilidade de introduzir outros produtos na pauta de exportação. Há muitos produtos os quais o Brasil poderia aumentar seus embarques para a China.
SI – O senhor participou da comitiva brasileira que esteve em visita oficial à China no início de novembro, na qual estava o vice-presidente da República Michel Temer e a senadora e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) Kátia Abreu. Algumas das pendências em carnes me parece foram destravadas nesta viagem.
Hugueney – A exportação de aves foi um tema que esta comitiva conseguiu equacionar. O órgão de sanidade chinês estava segurando a liberação de cinco plantas industriais de frango, as quais foram liberadas para exportar a partir das reuniões com as autoridades do país. As inspeções sanitárias já haviam sido feitas, faltava apenas a publicação no site da AQSIQ [Administração de Inspeção de Qualidade e Quarentena da China]. A reunião do Cosban [Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação] também foi muito boa. Esta era uma delegação importante, com a participação do vice-presidente brasileiro. Acho que o conjunto de atividades proposto realmente foi bem-sucedido.
SI – Um acordo visando ampliar as exportações brasileiras de milho à China também foi anunciado durante esta visita, cujo montante seria o equivalente a R$ 4 bilhões.
Hugueney – Isto era algo que se esperava há muito tempo. Na realidade não é uma quantidade propriamente dita. O que houve foi uma homologação da possibilidade de o Brasil exportar milho para a China. Como o país tem um estoque estimado em cerca de dez milhões de toneladas, há uma possibilidade de se exportar todo este volume ou parte dele. Aparentemente este estoque está disponível e não é necessário internamente. No entanto, aquantidade depende dos negócios entre importadores e exportadores.
SI – A China já uma importante importadora de soja do Brasil e deve passar a comprar significativos volumes de milho também. Estes insumos serão em grande parte direcionados à produção local de suínos e aves. Isto não é um indicativo de que haverá uma maior dificuldade na exportação de carnes ao país?
Hugueney – Não acredito. A equação sempre foi esta, realmente. Milho e soja ou se exporta em grãos ou na forma de porco e frango. Neste caso, no entanto, é preciso olhar de perto a produção chinesa de carnes. Dificilmente haverá uma expansão muito significativa. Eles já são os maiores produtores e consumidores mundiais de carne suína, mas possuem um déficit de 500-600 mil toneladas por ano. O Brasil possui estabelecimentos autorizados a exportar para o mercado chinês na área de suínos, mas é algo ainda recente. Já se tem plantas aguardando autorização e com o tempo isto será ampliado. O que não podemos perder de vista é a boa perspectiva que o País tem de desenvolver também a exportação de produtos manufaturados, como frios, embutidos e outros. É sempre bom lembrar que o Brasil não exportava nada na área de suínos porque não havia estabelecimentos autorizados. Foi uma batalha vencida durante a visita da presidente Dilma Rousseff em 2010, resultado de um trabalho realizado desde a minha chegada à embaixada em Pequim para solucionar alguns dos problemas que havia até então.
SI – No caso de frango, o panorama é o mesmo?
Hugueney – Os chineses possuem uma produção muito grande de frango. O consumo é enorme também, mas o Brasil se transformou no maior exportador desta carne para a China, ultrapassando os Estados Unidos. Esta demanda por frango importado vai seguir. Na área de bovinos é onde creio que os chineses tenham menor capacidade de expansão da produção.
SI – Especificamente no agronegócio, como o senhor avalia a relação Brasil-China?
Hugueney – É uma relação superimportante, duradoura e, no caso do Brasil, estratégica. É o saldo na balança comercial do setor agrícola brasileiro que sustenta o saldo com a China, juntamente com o minério de ferro. Não fosse a competitividade do agronegócio nacional, sua capacidade exportadora e de aumento nos embarques, nossa situação no comércio com a China seria altamente deficitária, porque o déficit no setor industrial é enorme. Isto torna o comércio entre os dois países importantíssimo. Não apenas na área agropecuária, mas também na florestal. A China é um enorme mercado para a indústria madeireira brasileira de polpa. Esta é uma situação que deve perdurar por muito tempo. A dependência chinesa por produtos importados na área agroalimentar e florestal continuará e tende a se acentuar conforme avança o processo de urbanização e de crescimento de renda no país. Ao mesmo tempo, seria importante que o Brasil desenvolvesse um sistema de dupla via comercial na área agropecuária. Os chineses poderiam exportar frutas ou peixes para o mercado brasileiro e ainda assim o país manteria uma vantagem muito grande nesta relação; da mesma forma que os chineses detêm uma vantagem enorme sobre o Brasil na área industrial.
SI – Brasil e China não poderiam caminhar para um acordo bilateral, como os que têm sido fechados entre países e/ou blocos econômicos?
Hugueney – A política brasileira tem se posicionado contrária a acordos de livre comércio. O Brasil não negociou nada nas últimas décadas. O único acordo negociado foi o Mercosul, que cada vez mais enfrenta dificuldades e até agora não conseguiu avançar na constituição de uma verdadeira área de integração entre os cinco países que o compõem atualmente. Tivemos ao longo destes anos todos, uma política de não negociar acordos de livre comércio e de favorecer o mercado interno com um alto nível de proteção. Hoje, esta política comercial deveria ser reavaliada. Primeiro, ela não produziu os resultados esperados. O Mercosul não avançou, a indústria brasileira enfrenta dificuldades há tempos e elas estão se acentuando e não se resolvendo. O setor agrícola brasileiro é hoje um setor extraordinariamente moderno e competitivo. É preciso repensar esta política e abrir mais o País à competição, visando reformular suas políticas interna, industrial e comercial. Segundo, está ocorrendo no mundo movimentos que são importantes e vão afetar o Brasil.
SI – O senhor se refere aos acordos que estão sendo negociados?
Hugueney – Sim. Está em negociação uma parceria Transpacífico. Ainda não há muita clareza em relação a qual é o contorno dela, mas engloba um mercado gigantesco. Os Estados Unidos estão em uma negociação extremamente difícil e complexa com a Europa para a constituição de uma grande área de integração. A Rodada Doha enfrentou sérias dificuldades e não conseguiu ser concluída. Mesmo a reunião interministerial de Bali está enfrentando problemas. Negociações em nível multilateral são muito difíceis e a situação da economia mundial segue ainda complicada. O Brasil precisa repensar suas políticas e se reposicionar frente a estes movimentos globais. A CNI [Confederação Nacional da Indústria] se declarou a favor da negociação de um acordo com os Estados Unidos. Depois de um intervalo de anos, o Brasil está retomando uma negociação com a União Europeia; ou Mercosul-União Europeia. No entanto, quando se começa a fazer estes movimentos, não faz muito sentido realizá-los de forma exclusiva em relação a um único parceiro. Vale mais a pena aproveitar a negociação e ampliar o leque dela. O momento é complexo porque a economia mundial segue ainda fragilizada. Agora, retornando a sua pergunta anterior, não sei se uma negociação clássica de acordo de livre comércio faria sentido no caso da China ou mesmo da Ásia.
SI – Por que o senhor acha isto?
Hugueney – Os países asiáticos cada vez mais terão de importar produtos agrícolas ao mesmo tempo em que também possuem um problema complicado de segurança alimentar, dado o tamanho de suas populações. Mesmo Coreia do Sul ou Japão, são países cujo nível de proteção é alto na área agrícola. Ninguém quer depender de um único fornecedor e ao mesmo tempo precisa ter certo nível de produção interna, exatamente para garantir a segurança alimentar de sua população. Por outro lado, são países com uma competitividade extraordinária na área industrial. Esta é uma equação que torna difícil a busca por um acordo global de abertura de mercado. No caso da Ásia, defendo que sejam exploradas alternativas de negociações. Por exemplo, quais os problemas enfrentados pelo Brasil para acessar os mercados asiáticos na área agrícola? Um dos mais sérios é a questão dos regulamentos; e isto tem a ver com toda a nova geração de acordos. Nestes mega-acordos não se está mais negociando tarifas ou barreiras nas fronteiras. O que os países estão procurando negociar são novas regras para o comércio mundial.
SI – Quais pontos seriam interessantes para o Brasil?
Hugueney – O Brasil poderia se posicionar em negociações com estes países buscando, por exemplo, um entendimento na área fitossanitária visando simplificar procedimentos. Outros pontos importantes seria negociar a redução da burocracia e formas de se autorizar mais rapidamente estabelecimentos à exportação. O mesmo pode ser feito na área de normas técnicas para produtos e até em identificação, como no caso do milho. Poderia se pensar alguma coisa na área de transgênicos para facilitar a aprovação de processos de homologação de sementes. Há muita coisa que o Brasil poderia fazer sem necessariamente envolver um esquema clássico de acordo de livre comércio.
SI – Este bonde o Brasil perdeu?
Hugueney – O acordo clássico de livre comércio está ficando superado. Os países não estão mais embarcando nele. É uma negociação de 20 anos atrás. Nós a perdemos. Nunca negociamos. Temos que nos engajar nesta nova forma, que é interessante. Iríamos levar um tempo enorme para negociar a questão da indústria. Dentro dos atuais parâmetros de negociações, poderíamos encontrar um meio-termo que satisfaça o setor mais competitivo da economia brasileira, que é o agroalimentar, sem criar dificuldades excessivas para o setor industrial do País.
SI – A cultura chinesa é muito diferente da ocidental. O Brasil tem dificuldades para negociar com a China, por talvez não compreender algumas especificidades culturais do país?
Hugueney – Os problemas que enfrentamos em negociações com os chineses, todos enfrentam. Só que Estados Unidos, Europa e outros países asiáticos estão há décadas se esforçando para compreender e desenvolver um melhor relacionamento com a China. Os chineses negociaram um acordo de livre comércio com a Asean [Associação de Nações do Sudeste Asiático], que é extremamente importante; e agora já estão aprofundando este acordo, tornando-o ainda mais avançado. Com a Coreia do Sul, os chineses já estão na oitava rodada de uma negociação para liberar 90% das posições tarifárias; e ainda estão examinando a possibilidade de negociar um acordo de investimentos com a Europa. A China se transformou no segundo maior importador mundial e sua economia cresce enquanto que a dos países desenvolvidos segue em taxas muito baixas. Cenário que tende a perdurar por algum tempo. Esta ascensão fez com que os países olhassem para a China como prioridade.
SI – O agronegócio brasileiro tem esta visão da China como prioridade?
Hugueney – O agronegócio brasileiro tem muito claro que o mercado chinês é prioritário, assim como a Ásia em conjunto. No caso do setor industrial é um pouco diferente porque eles encaram a China e os outros países asiáticos como competidores e não como oportunidade. Mas, retornando a outra questão, uma das causas da dificuldade brasileira no relacionamento com a China é que começamos tarde. Há décadas os países estão se aprimorando no entendimento do país. Enviam estudantes para lá, formam pessoas em mandarim, buscam conhecer e se aprofundar na cultura chinesa. No Brasil, este é um processo muito recente. O nível de conhecimento nosso ainda é muito limitado. Só recentemente estudos de Confúcio estão sendo implantados por universidades brasileiras, assim como de mandarim e de formação administrativa direcionada à China. Os setores produtivos também estão procurando compreender as melhores formas de se negociar com os chineses. Estamos atrasados, mas é um processo que já começou. É difícil porque a cultura chinesa é completamente diferente da ocidental. Exige do setor empresarial brasileiro um esforço muito maior do que com qualquer outro país europeu, por exemplo. É uma situação que o Brasil já enfrentou no passado com o Japão. Nos anos 1950-60 o país desenvolveu uma importante parceria na área agrícola com os japoneses. Estamos começando a fazer a mesma coisa agora com os chineses.
SI – Recentemente a China anunciou reformas. A plenária do 18º Comitê Central do Partido Comunista terminou com a oficialização do papel decisivo do mercado na economia chinesa. Na prática, o Partido Comunista da China abriu as portas de suas empresas ao setor privado, com a autorização para que investidores adquiram até 15% de participação em estatais. Que tipo de impacto estas medidas terão na economia chinesa e mundial?
Hugueney – É preciso olhar este programa de reformas sob dois pontos de vista. O primeiro é a aprovação do programa e o seu conteúdo. O documento aprovado indica um compromisso com uma ampla reforma da economia chinesa. Outro ponto importante é que se trata de um documento razoavelmente consistente ao abarcar um grande número de áreas e que tem uma linha – que é a que você apontou na pergunta – de aumentar o espaço da economia de mercado, do sistema de preços, da participação do setor privado, da participação do capital estrangeiro e reduzir um pouco o espaço do setor estatal e do governo no controle da economia. Em suma, os chineses têm um plano de reforma abrangente e que procura atacar alguns pontos-chave.
SI – Que pontos-chave são esses?
Hugueney – O programa chinês procura atacar não apenas esta questão do mercado, mas também a questão de domicilio fixo na China, procura atacar as questões sociais, a distribuição de renda, os problemas na área cultural, de ciência e tecnologia, a necessidade de converter o consumo doméstico das famílias no motor de crescimento da economia e de como modernizar a governança chinesa. É importante perceber que há um conjunto impressionante de medidas e que reflete este diagnóstico básico – que foi feito lá trás, já no décimo primeiro plano [Décimo-Primeiro Plano Quinquenal de Desenvolvimento da China] que passou e se tornou ainda mais claro no décimo segundo plano [Décimo-Segundo Plano Quinquenal de Desenvolvimento da China] – que é o de que a economia chinesa precisa se transformar para continuar crescendo. Os investimentos maciços em infraestrutura e comércio exterior, os grandes motores do crescimento chinês – perderam o fôlego. Então é preciso reconverter esta economia.
SI – O senhor afirmou que o programa de reformas chinês precisa ser visto sob dois pontos de vista. Qual o segundo?
Hugueney – O segundo aspecto diz respeito à sua implementação. Uma coisa é aprová-lo, outra implementá-lo. Ao olhar para o décimo segundo plano vê-se que muitas coisas foram ficando pelo caminho, não conseguiram ser implementadas. É certo que os chineses tiveram que enfrentar a pior crise econômica mundial desde 1929 durante a execução do plano e foram obrigados a deixar um pouco de lado as reformas e se concentrar em sustentar o nível de crescimento da sua economia. Muita coisa foi feita, mas algumas ficaram pelo caminho. Mas é óbvio que eles terão de enfrentar agora a batalha de implementação deste novo plano.
SI – O senhor é cético quanto à execução das reformas anunciadas?
Hugueney – Não, mas não é uma batalha fácil. O conjunto de reformas econômicas e sociais envolve mudanças em aspectos fundamentais da China. O governo, no entanto, parece ter uma estratégia clara quanto à sua implementação. Primeiro, já criou uma comissão de altíssimo nível para acompanhar a execução do Plano e acabou de determinar a constituição de uma comissão com 38 membros para percorrer o país para explicar as reformas às lideranças locais, para a população chinesa. Ou seja, o governo tem uma estratégia para mobilizar o povo chinês e levar adiante as reformas. Isto demonstra que as autoridades chinesas estão preocupadas com a implementação do plano.
SI – O senhor acredita que essas reformas abrirão espaço para empresas do agronegócio brasileiro – e não necessariamente só dele – a fazer joint ventures ou estar na China?
Hugueney – Acredito que o conteúdo das reformas deve modernizar a economia chinesa, abri-la mais para investimentos, para participação de empresas estrangeiras. E isso, obviamente, abre espaço para empresas brasileiras. Agora mesmo o Banco do Brasil está abrindo sua agência em Xangai, uma cidade onde está se criando uma zona de livre comércio exatamente para promover uma maior participação de empresas estrangeiras. E isto é muito positivo. Participei do período inicial de abertura da China, quando algumas empresas brasileiras foram para lá – e hoje muitas são muito bem-sucedidas – e acredito que nós brasileiros temos que gerar uma nova fase de interesse pela China, pelo mercado chinês e por uma presença maior na China.
SI – Uma das mudanças também se relaciona com a questão da propriedade no campo, que atualmente é estatal. Isto pode fazer com que camponeses vendam suas propriedades e migrem para as cidades. O senhor acredita que esta mudança pode gerar uma concentração de terras em mãos de grandes grupos para produção agrícola, até mudando o perfil rural da China?
Hugueney – Este é um tema extraordinariamente complexo e sensível. A China ainda é um país que tem uma população rural muito grande. Quando eu estava lá, pela primeira vez a população rural caiu abaixo de 50%. E hoje a China tem entre 500-600 milhões de chineses no campo. O governo tem um projeto de urbanização que está sendo executado, desenvolvido em cidades de segundo e terceiro escalão por meio de um processo de transferência de população do campo para a cidade. Nos próximos dez anos, a China pode transferir algo em torno de 300 milhões de pessoas do campo para a cidade. Ao mesmo tempo eles têm esta ideia de desenvolver um programa de modernização da agricultura.
SI – Como essa mudança no campo deve se dar?
Hugueney – Como a agricultura chinesa vai evoluir é um tema superimportante para a China e para seus parceiros. Acredito que o governo chinês vai experimentar novas formas de organização da propriedade, dada a sensibilidade política deste tema. Já existem os sistemas de leasing, eles estão cedendo cada vez mais a propriedade da terra ao camponês, uma vez que a terra no campo é toda do Estado. Foi no campo, com o sistema de responsabilidade domiciliar pela produção agrícola, que começou o processo de modernização da China, com a grande revolução inicial de Deng Xiaoping. Este processo vai se aprofundar agora. Hoje há investimentos privados no campo, inclusive de grandes multinacionais. Na produção de carnes, por exemplo, na avicultura chinesa, grandes abatedouros para criação e abate são de propriedade de grandes empresas multinacionais. De qualquer forma, teremos que acompanhar um pouco como este processo vai evoluir e qual vai ser o seu impacto na produção agrícola chinesa, na capacidade de modernização da agricultura chinesa.
SI – O senhor acredita que essa reforma pode estimular ganhos de produtividade na agricultura chinesa?
Hugueney – A agricultura chinesa já é bastante produtiva. A produção de grãos na China, por exemplo, vem aumentando ano a ano há muito tempo. E como no Brasil, esse crescimento se deve fundamentalmente ao aumento da produtividade. Trata-se, portanto, de uma agricultura competitiva, embora muito diferente da nossa. Independentemente desta reforma, entretanto, existem fatores que limitam a capacidade de expansão da produção agrícola no país. O esgotamento da terra, dos recursos hídricos, a falta de capacidade de gestão no campo, entre uma série de outros fatores, inviabilizam uma expansão muito expressiva da produção agrícola por lá, embora ainda haja espaço para avanços. O que acredito que possa ocorrer na agricultura chinesa é uma certa mudança em sua estrutura produtiva. Eles provavelmente vão desenfatizar determinadas coisas em detrimento de outras. Em certas áreas, por exemplo, os chineses vão depender mais de importação. Em outras, menos.
SI – Como fica o setor de carnes e de grãos?
Hugueney – O setor de carnes é um que não faz muito sentido a China expandir enormemente a sua produção. Pelo contrário, eles devem se tornar mais importadores. Agora, outros setores, como o setor de frutas, por exemplo, tem espaço para crescer. Eles já são um dos maiores produtores de frutas do mundo e têm um enorme mercado interno para frutas, que são alimentos bastante perecíveis. Na área de grãos a China deve continuar a ser uma grande importadora. Eles têm uma preocupação muito grande e devem continuar mantendo um nível alto de segurança alimentar nessa área. A exemplo da soja, acredito que a importações chinesas de milho devem atingir níveis mais elevados.
SI – Outra mudança se dará no controle de natalidade da China, que será flexibilizada, muito por conta do envelhecimento populacional. O senhor acredita que, em médio prazo, essa medida pode tornar a China ainda mais dependente do fornecimento de alimentos de outros países?
Hugueney – A flexibilização da política do filho único é muito qualificada e os chineses reiteraram que pretendem manter um sistema de planejamento familiar rigoroso, já que isto é fundamental para a estabilidade do país. Essa reforma tem a ver com a dinâmica demográfica da China. A população chinesa deve se estabilizar nos próximos 15-20 anos e a partir daí começar a decrescer. Por volta de 2030 a população chinesa deve chegar ao topo, com mais de 1.4 bilhão de habitantes, e a partir, já que está envelhecendo muito rapidamente, deve começar a se reduzir lentamente. A expectativa para a população chinesa em 2050 é algo em torno de 1.350 bilhão de habitantes, uma marca muito semelhante à população atual. Esse movimento pode criar – e já está criando – um problema para o país na medida em que desaparece o input de jovens no mercado e os salários na China já vem aumentando ano a ano significativamente. Mas acredito que a flexibilização da política de planejamento familiar seja moderada. Agora, respondendo a sua pergunta, o aumento da demanda de alimentos na China está muito mais ligado à questão de urbanização e à mudança de estrutura de renda da população do que ao crescimento populacional.
SI – Até onde o senhor acha que pode chegar esta relação comercial China e Brasil? O que podemos vislumbrar deste relacionamento comercial daqui uns 20 anos, por exemplo?
Hugueney – A China seguirá sendo um país fundamental para o mundo. Eles são 1/5 da população mundial, um país de 9 bilhões e meio de km². A China é um país de peso. Hoje eles são a segunda economia do mundo, com perspectiva de se transformar na maior economia mundial num futuro próximo. Mantidas as taxas de crescimento das economias da China e dos Estados Unidos a distância entre elas vai desaparecer rapidamente. É certo que a China ainda vai continuar a ser um país em desenvolvimento, com uma renda per capita muito abaixo da norte-americana, mas isto não a impede de ser um país fundamental para a economia mundial. De modo que, mesmo que haja algum tipo de acidente de percurso, o que sempre pode ocorrer, a presença da China vai ser uma fundamental para qualquer país.
SI – E como fica o Brasil nesse contexto?
Hugueney – O que ocorre conosco é a necessidade de olharmos mais para a área do Pacífico, para a Ásia. E não só para a China, mas para todo o leste da Ásia. Para a própria Índia, para a Indonésia. Os países desta região estão se transformando no grande polo da globalização, como a região do Atlântico foi até recentemente. Os Estados Unidos estão muito atentos a isto e estão procurando fortalecer sua presença no Pacífico. Sem deixar de lado, claro, o Atlântico. Por isto vem agora um acordo com a União Europeia para tentar consolidar esta relação atlântica.
SI – É preciso trabalhar nas duas frentes?
Hugueney – Sim. Acredito que temos que acordar para estas transformações que estão ocorrendo no mundo. Temos que procurar repensar a nossa inserção no mundo. O Brasil ficou muito parado e chegamos a um ponto que necessitamos de uma estratégia de reforma. Se uma economia como a chinesa, tão centralizada, com uma presença tão poderosa de empresas estatais, do partido, que tem um sistema rígido, burocrático, consegue se modernizar, se reciclar, colocar na mesa uma estratégia de reforma, definir uma linha de implementação destas reformas, acredito que o Brasil possa repensar sua postura. Olhar para o que está ocorrendo lá fora, ter presente que as coisas estão mudando, que temos que nos reposicionar. Por que, sinceramente, não vejo que estejamos em uma trajetória ganhadora. Se olharmos o crescimento do PIB brasileiro nos últimos anos, a situação da indústria brasileira vemos, claramente, que temos a necessidade de mudar a forma de nos relacionarmos com o mundo.
SI – O senhor acredita que o Brasil tem condições para isso…
Hugueney – O Brasil tem uma situação extraordinária porque avançou justamente na área em que a China quer agora avançar. O Brasil hoje praticamente não tem desemprego. É um País que tem uma distribuição de renda muito melhor do que tinha, que tem programas sociais importantes, que possui um setor agrícola supermoderno. O Brasil tem uma economia de porte, é a sétima economia do mundo. Tem capacidade, uma dotação de recursos naturais privilegiada que a China não tem. Temos todas as condições para nos reciclarmos e voltarmos a crescer de forma acelerada, fazendo o inverso do que o chinês está tentando fazer. Nós temos é que aumentar a taxa de poupança e investimento na economia brasileira. É muito difícil crescer a taxas elevadas se o país investe apenas 18% do PIB. A taxa de investimento tem de crescer significativamente para atingirmos taxas de crescimento expressivas. Não em um ritmo chinês, que não faz sentido no caso do Brasil, mas uma taxa de crescimento em torno de 5% ao ano, que nos permita retomar um processo de modernização.
SI – Ou seja, o Brasil precisa ser mais China: priorizar investimentos e não apenas estimular o consumo interno…
Hugueney – Temos que fazer um esforço na área de infraestrutura. Já começou a ser feito. A nossa infraestrutura envelheceu imensamente. O prejuízo que isto causa para o agronegócio é gigantesco. Mas agora estamos abrindo portos, ferrovias, etc. Temos que trazer o setor privado para estas áreas, desenvolver projetos. E as perspectivas de financiamento são excelentes, porque as pessoas estão procurando oportunidades de investimento. Existe um exagero de poupança no mundo. Ao mesmo tempo não há onde investir, já que a Europa está em crise e a economia norte-americana não cresce. O Japão agora começa a tentar se recuperar. Então, onde estão as oportunidades? As oportunidades estão em países em desenvolvimento e o Brasil sempre foi um país com capacidade de atrair investimentos. Acredito que agora temos uma capacidade enorme de colocar projetos na mesa que despertarão grande interesse dos investidores que estão buscando oportunidade de investimento. Para concluir gostaria de deixar claro o seguinte: estamos em um momento em que precisamos rever a forma como nos relacionamos com o mundo. Mas é um momento bom para essa reflexão, porque a economia mundial ainda vai levar um tempo para retomar e quando isso acontecer podemos estar em uma situação muito melhor.
Esta entrevista faz parte do Anuário 2014 de Suinocultura Industrial.
Acesse o conteúdo completo da revista em:
http://suinoculturaindustrial.com.br/edicao/255/20131213144540_H_534