A sanidade animal da América do Sul pode entrar em estado de alerta. O Valor teve acesso a fotografias de embalagens de vacina contra febre aftosa que indicam a manipulação, na Argentina, de uma variedade exótica do vírus ao continente americano. As imagens dos frascos foram feitas em Taiwan, com rótulos do laboratório argentino Biogénesis-Bagó, para a proteção contra a variedade “O Taiwan” do vírus da febre aftosa, versão esta que não existe na região. Pela análise das fotos, fontes brasileiras indicam que o laboratório argentino estaria manipulando a versão do vírus com objetivo de produzir vacinas destinadas à exportação para países asiáticos, entre eles Taiwan.
As imagens mostram claramente o nome comercial da vacina do laboratório argentino – Aftogen Oleo -, a variedade do vírus a qual ela é destinada, bem como a série do lote, data de fabricação e também de vencimento. Pelas fotos obtidas pela reportagem, os produtos exportados para Taiwan foram fabricados em junho e novembro de 2009, além da série 685, produzida em setembro de 2010.
Atualmente, existe um acordo sanitário entre os países da América do Sul para que não haja manipulação de variedades exóticas do vírus da febre aftosa ao continente. A própria Comissão Sul-Americana de Luta contra a Febre Aftosa (Cosalfa) convencionou que nenhum laboratório trabalhe com versões que não tenham sido identificadas e registradas na região devido ao elevado risco de contaminação por possíveis falhas na biossegurança dos laboratórios que manipulam o vírus. O vazamento de um vírus exótico poderia comprometer todo o programa de controle e erradicação da febre aftosa no continente.
Segundo Rodolfo Bellinzone, diretor técnico da Biogénesis-Bagó a empresa não está manipulando o vírus exótico em seu laboratório na Argentina. As vacinas estão sendo produzidas a partir do banco de antígeno inativo e congelado, criado antes de o vírus ter sido destruído em 2008. “Nosso laboratório é constantemente avaliado pelos órgãos brasileiros e da Argentina e cumpre as exigências necessárias”, disse Bellinzone ao Valor.
Falhas na biossegurança de laboratórios são raras, mas acontecem. Em 2007, o erro em uma válvula de um encanamento conectado a uma centrífuga permitiu que o vírus da febre aftosa alcançasse o sistema de drenagem das instalações de um laboratório inglês, atingindo o meio ambiente. Os danos foram minimizados porque, na época, a variedade que fugiu aos controles não era exótica ao Reino Unido.
Além da preocupação do continente, a Biogénesis-Bagó conseguiu autorização do governo brasileiro para exportar vacinas contra febre aftosa ao país. Apenas em 2010, o Ministério da Agricultura aprovou 29,6 milhões de doses da vacina argentina. Para conseguir a autorização de exportação, a condição imposta pelo governo brasileiro foi de que a empresa não manipulasse vírus exóticos e que qualquer cepa existente fosse destruída.
“Ainda não recebemos nenhuma denúncia oficial sobre o assunto, mas se recebermos serão realizadas auditorias e esclarecimentos”, disse ao Valor Guilherme Marques, diretor do departamento de saúde animal do Ministério da Agricultura do Brasil.
O diretor do ministério lembra que há cerca de dois anos uma missão brasileira foi à Argentina vistoriar o laboratório e constatou a semente do vírus fora destruída. Existia, contudo, o antígeno inativado é superconcentrado do vírus. Segundo fontes do mercado, é comum que países mantenham o antígeno inativo e congelado para casos emergenciais. Ele, no entanto, possui vida útil que varia de seis a oito meses e permite a produção de uma quantidade limitada de vacinas.
Para o Brasil, o risco de manipulação de um vírus exótico no continente é que no caso de um vazamento e escape, as vacinas produzidas atualmente não controlam essas variedades. Hoje, os produtos utilizados controlam as espécies “A 24 Cruzeiro”, “O 1 Campos” e “C 3 Indaiau”.
Apesar de ser possível manipular em um mesmo laboratório duas variedades diferentes de vírus, existe o risco de que ocorra uma contaminação cruzada, dentro do próprio laboratório. Com isso, uma vacina comercializada para combater determinadas espécies de vírus poderia conter o antígeno de outras. Nessa hipótese, o anticorpo exótico poderia facilmente passar ao controle do governo, já que os protocolos de fiscalização não levam em consideração a possibilidade de haver outro antígeno que não aqueles esperados.
No Brasil, o Sindicato Nacional da Indústria de produtos para Saúde Animal (Sindan) informou apesar de contribuir com o governo, apenas segue as regras determinadas pelo Ministério da Agricultura. Para o membro do Grupo Interamericano para a Erradicação da Febre Aftosa (Giefa) e representante do Conselho Nacional da Pecuária de Corte (CNPC), Sebastião Guedes, manter um vírus exótico é correr um risco desnecessário.
Segundo Marques, do ministério brasileiro, no caso de se confirmar ã existência da variedade exótica do vírus, existe a possibilidade de que as importações do laboratório argentino sejam suspensas. O governo já prepara uma nova vistoria na Argentina.