Fonte CEPEA

Carregando cotações...

Ver cotações

Economia

A China e o mundo

O sucesso da economia chinesa exerce uma atração irresistível para os que veem no seu modelo a possibilidade de fácil replicação. É objeto da admiração e inveja por parte dos países emergentes.

A rápida evolução da economia chinesa é, de um lado, objeto da admiração e inveja por parte dos países emergentes e, de outro, motivo de preocupação real e ideológica por parte dos países desenvolvidos (que são o centro do capitalismo financeiro). Esses são sempre apoiados num Estado constitucionalmente limitado. Seus governos são escolhidos periodicamente pelo sufrágio universal em eleições abertas, que garantem a competição livre e honesta entre várias organizações partidárias. Neles, a própria Constituição impede o “aparelhamento” do Estado pelo partido eventualmente vencedor. Isso é fundamental para garantir a continuidade e legitimidade do jogo eleitoral.

Nessas sociedades, o “garante” das liberdades individuais é um Supremo Tribunal Federal, cujos membros são constitucionalmente blindados contra qualquer pressão, quer do Executivo, quer das “ruas”. O Executivo sempre quer mais poder; o clamor popular quer vingança, não justiça.

Antes de prosseguir, um pequeno desvio. Há constituições e constituições! A constituição “democrática” da velha União Soviética (a URSS), por exemplo, “garantia” a todo cidadão “liberdade de expressão, de imprensa, de reunião e de religião”. O pequeno problema é que cada uma dessas palavras tinha significado próprio, definido nela mesma. Por exemplo, “liberdade de expressão” (e todas as outras “liberdades”) eram garantidas sob uma condição. Deviam respeitar os “interesses dos trabalhadores de forma a fortalecer o sistema socialista” (Nutter, W., ” The Strange World of Ivan Ivanov: 11″). Mas quem eram os trabalhadores? Apenas o próprio sr. Stalin, pelo qual o velho Karl paga a conta até hoje! Qualquer semelhança com propostas que recentemente circularam no Brasil não pode ser mera coincidência…

O sucesso da economia chinesa exerce uma atração irresistível para os que veem no seu modelo a possibilidade de fácil replicação, mas desconsideram o contexto em que ele pode realizar-se. Não se pode viver sem um nome. Fala-se, agora, no Consenso de Pequim. À platitude e ideologia do Consenso de Washington, que iludiu uma geração de economistas com a conversa de “preços no lugar” e não levou a lugar nenhum (como era previsível), o novo consenso propõe uma equação até aqui não resolvida pela história: combinar por muito tempo o sucesso econômico com a falta de liberdade individual.

Os nove membros do Comitê Permanente do Politburo, presidido por Hu Jintao, conhecem bem a história. Tal sistema só funciona enquanto se pode absorver as inovações e as tecnologias desenvolvidas nas economias hoje maduras. A partir daí, a tendência é a volta ao crescimento medíocre e à exacerbação das pressões sociais.

A verdade poucas vezes enfatizadas é que o Politburo chinês é tecnicamente competente e tem à disposição uma das mais treinadas e diligentes burocracias de quantas existem ou existiram no mundo. Depois da destruição produzida por dois séculos de distúrbios, retornou-se à antiga tradição. Já no segundo século (em 124 A.C.), criou-se uma Universidade Imperial para preparar funcionários públicos, que são cooptados por concurso público e cuja progressão é estritamente pelo mérito.

O Politburo sabe que, para repetir mais 32 anos de crescimento a 11% ao ano, precisa alugar, comprar ou conquistar terras e recursos naturais equivalentes a outro território chinês. Está, esperta e calmamente, realizando o seu programa através de empresas estatais (que escondem o Estado soberano). Com isso espera contornar os efeitos dramáticos sobre os preços internacionais de alimentos e recursos naturais que serão produzidos pelo seu próprio crescimento.

Não há nenhuma objeção ao capital estrangeiro no setor de terras e recursos minerais, desde que realizado através de empresas privadas nacionais, mesmo com capital estrangeiro. O que não se pode admitir é a vendê-los a Estados soberanos sob o disfarce de empresas estatais, porque isso pode atingir profundamente o interesse nacional e desqualificar os mercados internacionais na formação de preços. Não devemos desperdiçar nossa complementaridade sinérgica com o desenvolvimento chinês, mas não devemos deixar de olhar o futuro.

As decisões do Politburo revelam que ele entende claramente que sem suprimento externo garantido e a preço controlado, a China provavelmente não poderá repetir mais 30 anos do mesmo crescimento. A conta é simples: se o mundo crescer à taxa de 3% até 2040, e a China reduzir sua taxa para 9%, o PIB chinês (medido em paridade do poder de compra de 2008), que hoje representa 11% do total, representaria 70% em 2040! O resto do mundo teria de diminuir 0,4% ao ano para acomodá-la, o que é improvável economicamente e inaceitável politicamente. Se o resto do mundo crescer a sua taxa histórica de 3% ao ano, para acomodar o crescimento da China (que então passaria de 11% para 44% no PIB global), o crescimento do mundo teria que ser da ordem de 4,5%, o que é claramente impossível diante do problema do aquecimento global.

O dilema está posto: se correr o bicho pega, se parar o bicho come! É conveniente, pois, reconsiderar a política laxista que até aqui temos tido com o novo-colonialismo chinês, sem deixar de insistir no comércio. Vamos impedir a compra de recursos naturais pelo Estado soberano chinês e, simultaneamente, aumentar o grau de sofisticação de nossas exportações de alimentos e minérios?

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.