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Soja, uma aposta que superou expectativas

Capitalizados, os produtores brasileiros atrasaram a venda da safra 2002/03 e lucraram mais que o previsto.

Da Redação 22/10/2003 – 04h32 – Já era uma barbada: safra volumosa e mercado francamente comprador. Mas, como em todo jogo, o apostador também precisa de talento e de uma boa dose de sorte. Confiante e capitalizado, o produtor brasileiro de soja usou e abusou de todas essas cartas nos últimos meses. E ganhou. Nunca foi tão lucrativo produzir soja no Brasil quanto na recém-encerrada safra 2002/03.

Estimativa da consultoria Safras & Mercado aponta que a cultura deve render, no total, R$ 31 bilhões aos produtores em 2002/03. O valor, baseado em uma safra de 51,2 milhões de toneladas a um preço médio de R$ 37 por saca, é 40% superior aos R$ 22 bilhões de 2001/02. Todo esse aumento não foi por acaso: a safra 2002/03 foi 20,3% maior que a anterior e os preços médios devem ser 18,3% superiores. Mas as estratégias traçadas pelos produtores ajudaram a engordar ganhos que já pareciam certos.

Um bom exemplo é o gaúcho Vanderlei Basegio, dono de uma propriedade em Coxilha (RS). Em março último, ele colheu 70 mil sacas, mas ainda é possível encontrar 65% desse volume em seus armazéns. “Todo ano seguro a soja para vender mais tarde e aproveitar o preço. Mas é preciso muito sangue frio”. Depois de pelo menos três safras das mais remuneradoras, havia menos motivos para o sangue de Basegio esquentar, mas valeu a aposta – dele e da maior parte dos produtores espalhados pelo país.

Capitalizados, eles puderam escalonar as vendas nas últimas temporadas para aproveitar a tradicional alta das cotações no fim do ano, época de entressafra no país. “Também contribuiu o maior volume de recursos para financiamento fornecido pelo governo, que foram parcelados pelo produtor”, diz Roberto Petraukas, superintendente de comercialização da cooperativa paranaense Coamo.

Com esse “colchão”, a aposta de Basegio e de outros tantos chegou ao ponto de acabar com a tradicional pressão de oferta na colheita em 2002/03. Isso porque, na safra anterior, eles não aproveitaram como gostariam o pico de R$ 50 por saca alcançado em outubro de 2002, por já estarem com 90% da produção comercializada. Esta experiência também ajudou a esfriar o sangue nas veias dos produtores.

No início de agosto, quando as colheitadeiras começavam a percorrer os campos, havia sido vendida 56% da safra, ante 73% da média dos últimos cinco anos, segundo a Safras & Mercado. Gaúchos e paranaenses – que contam com crédito oficial mais fácil, apoio das cooperativas e propriedades estruturadas, que demandam menos investimento – jogaram mais fichas na mesa. Tinham em estoque, em agosto, 82% e 72% da produção, respectivamente, ante 36% dos mato-grossenses.

Os produtores acreditavam que tinham nas mãos um às de ouros: o dólar. Normalmente, o câmbio sobe no segundo semestre, pois a economia está aquecida com a chegada das festas de fim de ano, que estimulam importações. Além disso, as exportações agrícolas, que geram divisas para o país, estão concentradas no primeiro semestre. Mesmo assim, os analistas alertavam que a carta não passava de um dois de paus, pois o clima de lua-de-mel do mercado com o governo Lula indicava melhora dos indicadores macroeconômicos.

Os analistas estavam certos. O dólar recuou de R$ 3,035, em 1 de agosto, para R$ 2,86 ontem. Mas o imponderável deu o ar da graça e a safra dos EUA, que chegou a ser estimada em 80 milhões de toneladas, quebrou. “Em julho, havia sinais de que a produção americana levaria os preços a patamares inferiores aos da colheita de 2003”, lembra André Pessôa, da Agroconsult.

Os americanos, contudo, foram surpreendidos por ataques da praga pulgão chinês e por uma das piores secas da história. A região oeste do cinturão de grãos dos EUA (Iowa, Minesota, Kansas, Nebraska e Missouri) foi a mais atingida. E o momento foi o pior possível: agosto, época do enchimento do grão de soja. Já os produtores de milho, cultura cujo desenvolvimento termina em julho (apenas um mês antes), estão colhendo uma supersafra. Em seu último relatório, o Departamento de Agricultura dos EUA (USDA) previu a safra americana de soja 2003/04 em 67,17 milhões de toneladas, a menor desde 1996/97. Para os brasileiros, era a volta do ás ao jogo.

Hoje, eles assistem as cotações ultrapassarem US$ 7,00 por bushel em Chicago. É a segunda vez nos últimos 30 anos que a soja atinge o pico do preço anual na época da colheita americana. Isso só havia ocorrido em 1974. Assim, os preços no mercado interno chegam aos melhores patamares de 2003. “Também é a primeira vez neste ano que os preços no interior, por conta da demanda interna, superam o porto”, observa Seneri Paludo, da Agência Rural. A saca foi cotada ontem a R$ 47,50 em Ponta Grossa e em R$ 47,00 em Paranaguá.

“O produtor teve mais sorte do que juízo”, diz Flávio França Jr, da Safras. “Não posso recomendar uma estratégia dessas, mas, nesses casos, torço para errar”. Se a quebra da safra americana não tivesse acontecido, os preços em Chicago poderiam estar hoje em US$ 5, dizem os analistas. Com base nas 13 milhões de toneladas que o produtor tinha em estoque em agosto, a Safras calcula que o sangue frio rendeu uma gorda “caixinha” de R$ 3 bilhões aos agricultores.

Ao mesmo tempo em que comemoram a escalada das cotações do grão, as esmagadoras penam para encontrá-lo e começaram a parar as fábricas para manutenção antes do tempo. A Cargill interrompeu as operações em Ponta Grossa (PR) nesta semana e há rumores de que a ADM também parou sua unidade de Paranaguá.

“O amor é tão grande que o produtor virou colecionador”, brinca José Luiz Glaser, diretor da área de soja da Cargill. O executivo ressalta que os bons preços financiarão a continuidade do crescimento de dois dígitos da safra brasileira de soja por mais um ano, o que poderá trazer mais problemas de infra-estrutura para o país, dada a precariedade das rodovias e ferrovias.

O USDA previu a produção brasileira em 60 milhões de toneladas em 2003/04, e as exportações em 26 milhões – pela primeira vez acima dos embarques dos EUA, líderes históricos nesse ranking. E, ao que tudo indica, os brasileiros deverão insistir, em 2003/04, na vitoriosa estratégia atual. Até agora, 25% da safra foi comercializada antecipadamente. “O dólar sempre pode subir um pouquinho”, diz Basegio, que ainda não vendeu nenhuma saca dos 1,2 mil hectares de soja que pretende plantar. O sangue em suas veias? Gelado.