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Entrevista

Governo precisa desmontar ideia de que é "contra os mercados", diz Delfim

O ex-ministro tem sido um crítico tanto do conteúdo quanto da forma da gestão econômica deste governo e, sobretudo, do expansionismo fiscal.

Governo precisa desmontar ideia de que é "contra os mercados", diz Delfim

O agravamento da situação das contas públicas inquietou ainda mais os mercados, já descrentes da política econômica do governo. O ex-ministro Antonio Delfim Netto, conselheiro informal da presidente Dilma Rousseff, tem sido um crítico tanto do conteúdo quanto da forma da gestão econômica deste governo e, sobretudo, do expansionismo fiscal.

Delfim, que apoiou o governo Lula e mantém relação de amizade com o ex-presidente, está preocupado com a “tempestade perfeita” que pode se armar para o Brasil. Ele considera elevado o risco de o país receber um rebaixamento das agências de rating no mesmo momento em que o Federal Reserve (Fed) começar a reduzir os estímulos monetários criados na crise.

Desde o ano passado Delfim vem alertando para a perda de confiança do setor privado no governo Dilma Rousseff e para as consequências desse distanciamento sobre os investimentos no país. “Há uma espécie de depressão psicológica na classe ligada ao capital. A outra classe está em melhor situação, aumentou seu nível de bem estar, está comprando casa própria. Tem a urna e o mercado. Se a urna se comporta mal, leva algum tempo mas o mercado acaba se vingando. Veja isso na Argentina”, analisa.

Mesmo com toda a dificuldade, Delfim acredita que o governo está mudando. Talvez não na velocidade que o setor privado gostaria. “Mas a tentativa de enfrentar o seguro-desemprego é uma mudança importantíssima”, entende ele. Caberia ao governo, também, “desmontar essa ideia de que ele é contra o funcionamento dos mercados e que quer intervir em tudo”.

A seguir, trechos da entrevista:

Valor: Os dados de setembro mostraram uma forte deterioração das contas públicas. O que pode acontecer daqui por diante?

Delfim Netto: Estamos caminhando para um déficit fiscal de 3% do PIB este ano e de 4% do PIB em 2014. Esse é o déficit nominal, que não passava de 2,5% do PIB. Acho que a estimativa do Banco Central para a dívida bruta não tem viés e poderia ser aceita pelo Fundo Monetário Internacional. Hoje, a dívida como proporção do PIB não seria uma coisa trágica, mas a perspectiva é preocupante.

Valor: Por quê?

Delfim: Em condições normais, o ano terminaria com 2,5% do PIB de déficit nominal e 60% do PIB de dívida bruta. Hoje, acho que a probabilidade é de chegarmos a 3%, ou um pouco acima de 3%, do PIB de déficit nominal. E veja o que está acontecendo com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Está no Congresso a proposta de mudança retroativa do indexador da dívida dos Estados e municípios.

Valor: Qual a sua preocupação?

Delfim: Quem precisa de uma LRF íntegra é o governo federal, para se defender dos caçadores de renda, que são as unidades federadas. Para o prefeito não interessa o crescimento nacional nem a inflação. Para ele interessa melhorar o trânsito, porque assim ele chega a governador. Portanto, ele não tem respeito pelo equilíbrio fiscal ou monetário. O governador não está preocupado com a estabilidade. Ele quer mais endividamento, por que pretende ser presidente da República. Eles têm todo o interesse em aumentar a dívida, porque não têm nenhuma responsabilidade com os resultados macroeconômicos, com a dívida pública que, no fundo, é a redução do crescimento do país e mais inflação. Nós construímos um sistema político em que, se o governo federal não tiver a proteção da lei, não consegue resistir à pressão das unidades federadas. A probabilidade, portanto, é de se caminhar para o desequilíbrio fiscal.

Valor: Mas isso significa voltar a um assunto dos anos 90, que já parecia superado, não?

Delfim: É voltar para o período anterior à LRF.

Valor: Mas não é o próprio Executivo que está patrocinando essa mudança, abrindo caminho para um novo ciclo de endividamento dos Estados e municípios?

Delfim: Rever a taxa de juros daqui para frente não tem problema, mas estimular o endividamento, mesmo que para o investimento, quando estamos perto do pleno emprego, só vai estimular a inflação. O que está perturbando hoje são duas coisas. Primeiro, a perspectiva de aumento da dívida bruta retira do governo a capacidade de enfrentar uma política anticíclica, se ele tiver necessidade. Numa situação perto do pleno emprego, isso pressiona os juros e aumenta o gasto com juros como proporção do PIB. E aí aparece uma de duas coisas: ou um déficit em conta corrente, ou inflação, que é o que está visivelmente ocorrendo.

Valor: Os mercados estão reagindo a um risco maior no futuro, e não à deterioração já ocorrida?

Delfim: Em minha opinião, o que está perturbando o mercado financeiro interno e externo e, também, as instituições internacionais, é que, se essa perspectiva não for combatida de forma enérgica pelo governo, o país terá o rebaixamento do “rating”. Estamos caminhando para uma situação muito complicada. Não é a situação de hoje, mas a perspectiva de que se está caminhando para uma situação fiscal pior é que está gerando esse mal-estar todo.

Valor: O sr. escreveu, recentemente, sobre o risco da “tempestade perfeita”. O país já viveu situações parecidas no passado?

Delfim: O rebaixamento do grau de investimento, se houver, pode coincidir com o momento de redução do “quantitative easing” nos Estados Unidos. Se tiver a combinação das duas coisas, vamos ter o que chamei de tempestade perfeita. Já vimos isso em 1979, 1983, 1998, 2002. É importante compreender isso: a situação atual nem é tão boa quanto o governo acredita, nem tão ruim quanto a oposição afirma. Ela não é desesperadora. Mas a perspectiva é preocupante, porque está se estimulando uma dinâmica perversa em que, ao mesmo tempo, se aumenta a taxa de juros real e diminui o crescimento. E isso vai exigir um superávit primário cada vez maior para manter a dívida bruta onde ela está.

Valor: Qual o resultado fiscal necessário para evitar uma trajetória insustentável da dívida pública?

Delfim: O FMI recomenda superávit de 3,1% do PIB. Isso é visivelmente influenciado por uma estimativa de juros real, que acho que eles consideram como próximo de 8%, o que é um absurdo. Eu diria que é preciso um primário de 2% ou 2,1% do PIB para manter essa coisa funcionando direito. E que as pessoas acreditem que isso vai ser feito sem truques. Este ano o superávit deve ser de 1,5% do PIB.

Valor: Mesmo com toda a expansão do gasto público não houve recuperação do crescimento. Por quê?

Delfim: Hoje a coisa está mais delicada porque estamos praticamente em pleno emprego. Então, a única forma de crescer é aumentando a produtividade do trabalho, o que significa basicamente aumentar a quantidade de capital entregue a cada trabalhador, obviamente com melhor tecnologia. Por isso o sucesso das concessões é fundamental, porque é aumento de produtividade na veia. Se para levar uma tonelada de soja de Mato Grosso para o porto de Paranaguá, hoje gasta-se 500 kg de soja, com boas estradas você vai gastar 200 kg. Se a infraestrutura for mais eficiente, aumenta a eficiência da economia e a taxa de câmbio tem que se ajustar menos.

Valor: Como o país deveria estar se preparando para esse risco, que o sr. vê, de uma “tempestade perfeita”?

Delfim: É preciso um grande esforço de restabelecer a confiança entre o governo e o setor privado. Recentemente, houve um esforço de uma parte do setor que apoia o governo de tentar obter, no Congresso, a independência do BC. Acho isso uma coisa duvidosa, mas tudo bem, as pessoas gostam de acreditar em duendes. Por que isso surgiu agora? Para tentar acomodar a posição do governo com relação ao setor financeiro, que dá a esse fator [a autonomia do BC] um valor maior do que ele tem. Não existe BC independente. A última piada do mundo é que o Fed é independente. Mas a aprovação dessa medida seria um símbolo, uma manifestação de que o governo não é intervencionista, que é a favor do mercado, do sistema financeiro, que o governo aprendeu, que compreendeu. Mas o resultado deu errado.

Valor: Voltando ao fiscal, o quanto essa deterioração piora a confiança do setor privado?

Delfim: Sem um bom fiscal não tem boa política monetária. É uma ilusão pensar que se pode manter um sistema em que o BC vai controlar a inflação com um fiscal desarrumado, porque o custo social desse negócio é impagável. Precisaria de uma taxa de desemprego gigantesca, que não é politicamente aceitável. Existem certas convenções que precisam ser obedecidas. Não adianta dizer que as agências de rating são uma porcaria, se sem o grau de investimento há fundos que não podem aplicar no Brasil. Não há um complô contra o governo. Há um complô de fatos que pode nos amolar muito.

Valor: O sr. não acha que está tarde demais para essa tentativa de aproximação com o setor privado?

Delfim: Nunca é tarde demais. E não há nenhuma garantia de que a urna vai mudar isso. Hoje, a probabilidade maior é de a presidente Dilma Rousseff ser reeleita. Na medida em que as pessoas se convencerem de que a probabilidade maior é a da reeleição, fica mais fácil a aproximação. É preciso desmontar essa ideia de que o governo é contra o funcionamento dos mercados e que quer intervir em tudo. A incerteza cria dúvida sobre a taxa de retorno do investimento futuro. Ela trava o investimento. Se o governo conseguir restabelecer a confiança, vamos assistir a uma mudança muito importante no comportamento da economia.

Valor: Portanto, o governo precisa do setor privado. O que é preciso para cooptá-lo?

Delfim: De uma atitude! Por exemplo, o governo não pode deixar perder a reforma do ICMS! A má alocação de fatores que ele produz esconde pelo menos 1% de crescimento por ano. Assim, o governo não pode deixar passar essa oportunidade de jeito nenhum. É hora de enfrentar a flexibilização do mercado de trabalho, é hora de enfrentar e aprovar o projeto de terceirização, mudar o seguro-desemprego, que é um assalto ao Tesouro Nacional. Tem que dar uma demonstração clara! O setor privado tem dois aspectos: na urna ele é uma enorme minoria, mas é quem produz o crescimento.

Valor: O sr. acha que o governo vai fazer isso na véspera da eleição?

Delfim: Provavelmente, não. Mas, veja, tem havido um avanço, ainda não muito sensível, no aprendizado do governo.