Redação (31/07/06) – Entre as atividades que movem a economia brasileira, um dos setores que mais evoluiu nas últimas décadas foi o da produção de carnes, sendo a carne de frango representada por 42,64% do total da produção de carnes no Brasil (FAO, 2004).
Para atender à demanda, a avicultura potencializa a produção, ocorrendo curtos intervalos entre lotes (5 a 10 dias) e trocas de cama a intervalos variáveis, podendo ser a cada seis ou sete lotes. Esse manejo acarreta, entretanto, problemas com relação ao aumento de insetos no interior dos galpões avícolas, visto que o conteúdo de matéria orgânica os favorece.
Em aviários de criação de frangos de corte, o inseto mais prevalente é o coleóptero Alphitobius diaperinus, descrito em 1797 e conhecido como cascudinho. São pequenos insetos (entre 6,0 mm e 6,8 mm) que se desenvolvem passando pelas fases de ovo, larva (aproximadamente oito ínstares), pupa e adulto (Chernaki & Almeida, 2001a). Seu ciclo é rápido, sendo completo (ovo a adulto) dentro de 42,5 dias à temperatura constante de 28 C (Chernaki & Almeida, 2001b), indicando que a cada novo lote de aves pode ocorrer uma nova geração de insetos, podendo cada fêmea produzir acima de dois mil ovos (Steelman, 1996).
A. diaperinus é responsável por diversos problemas que afetam direta ou indiretamente as aves. Esses insetos servem como alimento alternativo para as aves, que diminuem o consumo de ração. De acordo com Despins (1987), perus com 2 a 10 dias de idade podem consumir cada ave, de 174 a 221 larvas do inseto por dia. A associação destes fatores torna A. diaperinus um importante fator de risco em aviários como transmissor de doenças aviárias.
Pesquisas realizadas indicam que A. diaperinus atuam como fonte de contaminação de Campylobacter ssp. (Bates et al., 2004), Escherichia coli (McAllister et al., 1996), entre outros. No Brasil, há registro da presença de diversas enterobactérias em adultos de A. diaperinus, dentre elas E. coli, que causa a colibacilose em frangos de corte, Proteus vulgaris, P. mirabilis, Enterobacter ssp., E. agglomerans, E. gergoviae, E. sakasakii, Citrobacter diversus e Klebsiella pneumoniae (Chernaki-Leffer et al., 2002).
Entre as bactérias, as do gênero Salmonella apresentam maior importância na avicultura, devido ao risco de contaminação alimentar em seres humanos. A presença da bactéria na carcaça de frangos é fator de condenação, sendo, portanto de extrema importância econômica.
Através de estudos laboratoriais, A. diaperinus é citado como potencial veiculador de Salmonella thompson (Davis & Wray, 1995), S. typhimurium (McAlllister et al., 1994), S. heidelberg, S. whorthington, S. san paul, S. thyphimurium var. copenhagen, S. chester (Harein et al., 1970) e S. indiana (Skov et al., 2004).
A. diaperinus também é citado como hospedeiro intermediário de cisticercóides de helmintos que afetam frangos (Karunamoorthy et al., 1994), fungos (De Las Casas et al., 1970); protozoários (Goodwin & Watman, 1996) e vírus (Mcallister et al., 1995).
Devido à importância desse inseto para indústria avícola, elaborou-se o presente projeto de pesquisa que aborda a competência vetorial de A. diaperinus na transmissão de S. enteritidis. Embora haja vasta bibliografia relacionada ao assunto, não há registros consistentes na literatura brasileira, o que é tema do presente estudo.
Material e Métodos
Bioensaio I- Infecção experimental de larvas e adultos de A. diaperinus através de ração contaminada com Salmonella enteritidis (SE)
O bioensaio foi conduzido utilizando-se 120 larvas e 120 adultos, separados em grupos de 20 indivíduos.
Os insetos foram contaminados mediante ingestão de ração para poedeiras estéril posteriormente contaminada com S. enteritidis (amostra SA 109, Fagotipo 4, LABOR- FMVZ- USP).
Adultos e larvas permaneceram 24 horas sem alimento e após esse período, receberam 5 g de ração inoculada com 5 ml de S. enteritidis, com concentrações entre 107 e 109 bactérias/ml, mantidos à temperatura de 271C, escotofase 24 horas. O grupo testemunha, formado por 20 larvas e 20 adultos recebeu ração umedecida com 5 ml de caldo nutriente estéril LB para cultivo de Salmonella.
Os insetos foram submetidos à análise bacteriológica para confirmação a contaminação mediante contagem de UFC/ml no 1 e no 7 dia após infecção. No 1 dia, foram retirados cinco insetos/recipiente e no 7 dia os demais (n= 15 insetos).
Grupos de cinco insetos foram desinfetados assepticamente e macerados em água peptona estéril e a suspensão resultante diluída em série, na base dez, sendo em seguida semeada em ágar XLT4 (xylose-lysine-tergitol 4) (Difco) para a determinação da concentração de SE.
Bioensaio II- Contaminação de ração estéril por larvas e adultos de Alphitobius diaperinus contaminados com Salmonella enteritidis (SE)
Vinte larvas e 20 adultos contaminados por S. enteritidis foram expostos a 5 g de ração estéril para poedeiras, com objetivo de verificar sua capacidade em contaminar o alimento. Foram realizadas cinco repetições com insetos tratados e uma para o grupo controle, que receberam ração com LB estéril.
Após 24 horas (larvas) e após sete dias (adultos) os insetos foram retirados da ração, realizando-se as respectivas amostragens. Tal procedimento foi adotado porque foi observado no Bioensaio I que a porcentagem de larvas contaminadas aos 7 dias é consideravelmente reduzida.
Amostras de 1g de ração foram semeadas em 10 mL de tetrationato (Difco) e após crescimento semeado em placas com ágar XLT4. As colônias suspeitas foram reisoladas em ágar MacConkey e a presença de SE foi confirmada através da fermentação da lactose e de testes bioquímicos através do sistema Lac EMIC 9T (Probac).
Bioensaio III- Infecção experimental de pintinhos SPF após ingestão de larvas e adultos de Alphitobius diaperinus contaminados com Salmonella enteritidis (SE) via ração
Os insetos foram contaminados com SE e após 24 horas (larvas) e após 7 dias (adultos) em contato com a ração contaminada com S.
nteritidis foram retirados da ração e oferecidos vivos como alimento a pintinhos de um dia SPF (specific pathogen free).
Para conhecimento da concentração bacteriana de larvas e adultos após ingestão da ração contaminada, uma amostra de 10 larvas e 10 adultos, separados em grupos de cinco indivíduos foi macerada e submetida à contagem de UFC/ml.
Foram utilizados 160 pintinhos distribuídos em um desenho experimental com 4 tratamentos e 40 repetições, cada ave representando uma repetição, onde: T1 = pintinhos que receberam adultos de A. diaperinus livres de SE, T2 = pintinhos que receberam larvas livres de SE, T3 = pintinhos que receberam adultos contaminados por SE via ração e T4 = pintinhos que receberam larvas contaminadas por SE via ração. Cada pintinho recebeu cinco larvas ou adultos de A. diaperinus.
As aves ficaram alojadas em baterias de 1 m2 e receberam água e ração ad libidum. Os animais foram avaliados durante uma semana quanto à mortalidade. Aquelas que sucumbiram antes de completar uma semana foram necropsiadas e o ceco, fígado e baço foram semeados para o isolamento de Salmonella spp usando meio de enriquecimento tetrationato. Após 24 horas do cultivo em tetrationato foram semeadas em ágar XLT4.
Aos sete dias de vida, os pintinhos foram eutanasiados e necropsiados para retirada do fígado, baço e cecos, incluindo as tonsilas cecais.
As colônias suspeitas em amostras de ceco foram reisoladas em ágar MacConkey e a presença de SE foi confirmada através da fermentação da lactose e de testes bioquímicos através do sistema Lac EMIC 9T (Probac). Colônias suspeitas em amostras de fígado e baço foram submetidas à reação de soroaglutinação.
Análise Estatística – Os parâmetros referentes à infecção experimental de A. diaperinus (adultos e larvas) com S. enteritidis e infecção de pintinhos SPF após ingerirem adultos e larvas foram submetidos a uma análise comparativa usando o teste de Mann-Whitney a um nível de significância de 5% através do Software Estatístico InSTAT (Graphpad, 1999).
Resultados
Bioensaio I
Após 24 horas, os insetos adultos estavam contaminados com concentrações entre 3 x 103 e 1 x 105 UFC/ml do macerado (considerando um pool de 5 insetos) e as larvas com concentrações entre 1 x 104 e 4 x 106 UFC/ml. Decorridos sete dias da ingestão, os adultos apresentaram concentrações entre 1,2 x 104 e 2 x 107 UFC/ml e as larvas concentrações entre 3,1 x 105 e 1 x 107 UFC/ml (Tabela 1).
Não houve diferença significativa (P > 0,05) entre a contaminação de larvas e adultos após 24 horas de ingestão e 100% dos indivíduos estavam contaminados. Entretanto, após 7 dias os adultos estavam significativamente (P < 0,05) mais contaminados por SE que as larvas. Das 80 larvas submetidas ao macerado, 64,29% não estavam contaminadas, enquanto que em adultos, apenas 13,33% não apresentaram contaminação (Tabela 2).
Tabela 1. Contaminação de adultos e larvas de A. diaperinus 24 horas após ingestão de ração contaminada com concentrações entre 107 e 109 UFC/ml de Salmonella enteritidis. | ||
Repetições
(pool de 5 insetos) |
Adultos
(UFC/ml) |
Larvas
(UFC/ml) |
R1 | 1 x 105 | 1 x 105 |
R2 | 3 x 103 | 9 x 104 |
R3 | 5 x 103 | 8 x 105 |
R4 | 9 x 103 | 1 x 104 |
R5 | 3 x 104 | 4 x 106 |
Controle | negativo | negativo |
N. insetos (total) | 30 | 30 |
N. insetos contaminados (%) | 100 | 100 |
Tabela 2. Contaminação de adultos e larvas de A. diaperinus 7 dias após ingestão de ração contaminada com concentrações entre 107 e 109 UFC/ml de Salmonella enteritidis. | ||
Repetições
(pool de 5 insetos) |
Adultos
(UFC/ml) |
Larvas
(UFC/ml) |
R1 | 5 x 105 | 1 x 106 |
R2 | 2 x 107 | negativo |
R3 | 1 x 107 | 3 x 105 |
R4 | 2 x 107 | negativo |
R5 | 1 x 106 | 31 x 104 |
Controle | negativo | negativo |
N. insetos (total) | 90 | 90 |
N. insetos contaminados (%) | 86,67 | 35,71 |
Bioensaio II
As amostras de ração estavam positivas, exceto para uma das repetições, em que a caracterização bioquímica foi negativa. Assim, entre as cinco amostras de ração estéril (cada uma contendo 20 insetos), 80% foram contaminadas pela presença de A. diaperinus previamente contaminados com S. enteritidis.
Bioensaio III
Os pintinhos receberam adultos contaminados SE na concentração de 1 x 105 UFC/ml e larvas com 2 x 105/UFC/ml. Os grupos controles (larvas e adultos) estavam negativos para SE.
Após sete dias da ingestão dos insetos contaminados, os pintinhos foram mortos e submetidos à necropsia. Sete pintinhos sucumbiram antes do 7 dia, sendo dois deles do grupo controle. Todos eles foram necropsiados, confirmando a presença de S. enteritidis nas amostras de fígado, baço e ceco. Os pintinhos do grupo controle estavam negativos para contaminação com SE, havendo 5% de mortalidade por causa não determinada.
O grupo de pintinhos que receberam adultos e larvas de A. diaperinus tiveram, decorridos sete dias da ingestão, as amostras de fígado e baço contaminadas por SE. A cepa SA-109 apresentou notável poder invasivo sobre os respectivos órgãos. Apenas 10,80% das amostras estavam negativas, havendo, portanto 89,19% de pintinhos positivos para SE após ingestão de adultos contaminados com 2 x 105 UFC/ml de macerado de insetos. Entre os pintinhos que ingeriram larvas, apenas uma amostra de fígado e baço não apresentou contaminação, significando que 97,37% das amostras estavam contaminadas.
Os valores mínimos e máximos de UFC/g de fígado e baço foram de 0 a 4376,25, média de 322,47 UFC/g em pintinhos que ingeriram adultos e de 0 a 17406,17 UFC/g, média de 849,08 UFC/g para aqueles que ingeriram larvas. As aves que ingeriram larvas estavam significativamente mais contaminadas (P 0,05) que aves que ingeriram adultos. Com relação às amostras de ceco houve, da mesma forma, contaminação devido à ingestão dos insetos, porém em menor percentual. Cerca de 40% (44,74%) das amostras deste órgão foram negativas em pintinhos que ingeriram larvas e em pintinhos que ingeriram adultos, 78,38% das amostras de ceco estavam negativas. Os valores mínimos e máximos de UFC/g de ceco foi de 0 a 7118,18, média de 200,17 UFC/g em pintinhos que ingeriram adultos e de 0 a 4838,71 UFC/g, média de 428,11 em pintinhos que receberam larvas de A. diaperinus.
Como ocorrido em amostras de fígado e baço, amostras de ceco de pintinhos que ingeriram larvas estavam significativamente mais contaminadas (P 0,05) que aquelas em que os pintinhos ingeriram adultos de A. diaperinus.
Conclusões – Adultos de A. diaperinus que ingeriram concentrações entre 107 e 109 UFC/ml de Salmonella enteritidis ficaram contaminados com concentrações de até 1 x 105 UFC/ml e até 2 x 107 UFC/ml, 24 horas e sete dias após a ingestão, respectivamente.
Larvas de A. diaperinus que ingeriram concentrações entre 107 e 109 UFC/ml de SE ficaram contaminados com concentrações de até 4 x 106 UFC/ml e até 1 x 107 UFC/ml, 24 horas e sete dias após a ingestão, respectivamente.
Após sete dias, a percentagem de adultos contaminados é significativamente maior que a quantidade de larvas contaminadas, indicando que as mudanças ocorridas entre um estádio larval e outro seja o fator desencadeante para o decréscimo da contaminação larval.
Adultos e larvas de A. diaperinus albergando, respectivamente, concentrações de SE entre 1 x 106 e 4 x 106 UFC/ml foram capazes de contaminar 80% das amostras de ração estéril após sete dias de exposição à mesma.
Pintinhos que receberam pool de cinco adultos de A. diaperinus que albergavam 1 x 105 UFC/ml tiveram o fígado, baço e cecos positivos para SE após sete dias da ingestão dos insetos.
Pintinhos que receberam pool de cinco larvas de A. diaperinus que albergavam 2 x 105 UFC/ml tiveram o fígado, baço e cecos positivos para SE após sete dias da ingestão dos insetos.
Os pintinhos que ingeriram larvas tiveram maior contaminação do fígado, baço e cecos que aqueles que ingeriram adultos (P 0,05).
As larvas apresentam extrema importância epidemiológica pelo fato de serem capazes de veicular às aves concentrações significativamente maiores de SE que os adultos.
A. diaperinus atua como vetor mecânico de S. enteritidis, pois uma vez infectados por Salmonella são capazes de contaminar a ração e também as aves.
Referências Bibliográficas
Bates, C., K.L. Hiett & N.J. Stern. 2004. Relationship of Campylobacter isolated from poultry and from darkling beetles in New Zealand. Avian Dis. 48: 138-147. |
Andreia Mauruto Chernaki Leffer 1; Claudete S. Astolfi Ferreira 2; Antônio José Piantino Ferreira 3, Javier Kuttel 4, Antonio Carlos Pedroso & Lidiane Mota Martins .
1 – Médica Veterinária – Doutora em Entomologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
2- Pesquisadora da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia do Departamento de Patologia, Laboratório de Ornitopatologia (LABOR) da Universidade de São Paulo.
3- Professor Doutor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia do Departamento de Patologia, Responsável pelo Laboratório de Ornitopatologia (LABOR) da Universidade de São Paulo.
4- Vetanco do Brasil.