Fonte CEPEA

Carregando cotações...

Ver cotações

Comentário

Mercado de carbono deve regular a produção de alimentos?

Daniel Vargas é professor da FGV EESP e Coordenador do Observatório de Bioeconomia da FGV

Mercado de carbono deve regular a produção de alimentos?

O Brasil debate a regulamentação do mercado de carbono. A proposta da Senadora Leila Barros traça uma linha de corte universal: qualquer atividade econômica que ultrapasse teto de emissões fixado em lei pode ser regulada, a começar pela produção de alimentos. Será o melhor para o país?

O mercado de carbono é um dos mais complexos instrumentos regulatórios já criados pelo Estado. Não é trivial viabilizar seu bom funcionamento. Se o preço do carbono subir acima de um “teto”, pode quebrar setores inteiros. Se ficar abaixo de “base”, pode tornar a regulação irrelevante.

Para manter o preço entre os extremos, o mercado de carbono depende de exceções. A primeira é a concessão de licenças, uma espécie de privilégio justificado para evitar a saída de empresa do mercado. A segunda é controle das fronteiras, inclusive com tributação – uma limitação ao comércio internacional para proteger o mercado nacional da concorrência externa. A terceira são incentivos financeiros direcionados.

Quando funciona, o mercado de carbono transforma áreas inteiras do mercado em espécie de “serviço público” orientado pela burocracia estatal. Em vez de competirem entre si, pelo melhor produto e menor preço, empresas passam a concorrer primeiro “contra” as metas ou obrigações do Estado.

Se o preço e condições de funcionamento do setor já são previamente coordenados, pode fazer sentido. É o que ocorre no setor de energia, setor em que praticamente todas as etapas – da produção ao consumo, passando pelo preço – são reguladas pelo Estado, e em que a inovação é tipicamente lenta. É também o caso do setor de petróleo, da produção à distribuição.

Não é preciso muito esforço, contudo, para perceber como basta um parafuso se soltar nesta engrenagem para muita coisa dar errado. Europa, Califórnia e China sabem bem disso. Por isso mesmo, o mercado de carbono nestes locais é concentrado em atividades e instalações muito específicas, basicamente no setor de energia.

A distância da energia para o setor de alimentos é imensa. Como são imensas as variações de carbono em um saco de soja ou em um quilo de carne, a depender do local da produção, solo, clima, insumos, técnicas e tecnologias empregadas. Hoje, faltam critérios rigorosos para “individualizar” responsabilidades dentro da fazenda.
Mesmo que já existissem, ou que venhamos a desenvolvê-los, é do interesse nacional “controlar” o sistema de produção de alimentos pelo Estado? Sequer a Europa, maior defensora do rigor regulatório no clima, pensa que sim. Lá, a produção de alimentos é excluída do mercado de carbono. Assim como é excluída nos Estados Unidos e na China – ou em qualquer outro mercado de carbono regulado no planeta.

Aliás, as coisas parecem estar mudando lá fora. A Europa se movimenta para trazer o agro para dentro do mercado de carbono. Porém, como “credor” e não como “devedor”. Se suas atividades contribuírem para sequestrar carbono da atmosfera e fixá-lo no solo, o produtor de alimento poderia receber um crédito.

A agropecuária e a agroindústria devem ficar de fora da regulação do carbono. Nada disso significa aliviar ou passar a mão na cabeça de alguém. Significa apenas compreender que o mercado de carbono é uma ferramenta e não uma panaceia. Com cuidado e limites, ele pode servir para muita coisa, inclusive para mobilizar o país em torno de uma agenda da produção sustentável.

Sem foco ou escopo claros, contudo, o que poderia ser um remédio tem tudo para virar um veneno.

Em vez de unir, dividir.

Em vez de mobilizar, afugentar.

Em vez de criar uma política de Estado, ativar mais um campo de polarização ideológica radical no país.