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Agronegócio

Fala Agro: “O agro não precisa entrar no mercado de carbono como mais um devedor” por Daniel Vargas

Daniel Vargas, coordenador executivo - Observatório de Bioeconomia - FGV Agro

Fala Agro: “O agro não precisa entrar no mercado de carbono como mais um devedor” por Daniel Vargas

A exclusão da atividade agropecuária do projeto que regulamenta o mercado de carbono brasileiro aprovado na Comissão de Meio Ambiente do Senado foi amplamente criticada.  Concorda que essa decisão enfraquece o mercado de carbono brasileiro?

Não consigo enxergar desse modo.  O mercado de carbono é um dos inúmeros instrumentos de governança ambiental que devem ser colocados em prática para a transição verde no país, mas não deve ser tratado como uma panaceia.  Gostaria de dar um passo atrás para contextualizar o agronegócio nesse debate. Acho que, quando se trata de mercado regulado de carbono, a primeira coisa que se precisa levar em conta é que não estamos discutindo apenas uma questão moral abstrata, de quem é a favor ou conta o meio ambiente, de quem é mocinho ou bandido. Estamos discutindo a criação de um instrumento de governança do Estado nacional. Há inúmeras formas de o Estado agir sobre a economia que vão desde uma regulação simples até a tributação e o estabelecimento de critérios específicos de direito administrativo, e um desses instrumentos é o mercado de carbono. Para funcionar, esse mercado depende de um conjunto de condições muito exigentes, que no mundo todo ainda se debate sobre como implementá-las.

A primeira condição é um conjunto de pressupostos científicos, a existência de métricas e metodologias de mensuração de emissão que permitam a individualização dessa responsabilidade de uma maneira ágil para que seja viável. Por quê? O mercado de carbono é uma espécie de custo que se impõe sobre um determinado produtor. E esse custo é calculado em face de sua performance ambiental. Portanto, para delimitar esse custo é preciso haver estabelecido a infraestrutura cientifica ágil, rigorosa, que facilite ou viabilize essa operação. Esta, aliás, é uma das razões pelas quais vários países do mundo têm evitado expandir o mercado de carbono – de novo, um instrumento de intervenção do Estado na economia – para muitas áreas. No debate internacional é justamente esse o campo que vemos com muita ênfase: vários setores tentando precificar o carbono, mas ainda carecem de uma ciência própria e robusta. No agro, dada a variabilidade a dinâmica complexa desse setor com a natureza, pois se trata de um sistema aberto que está interagindo com diversos elementos, é muito mais complexo e difícil fazer isso do que no setor de energia onde o mercado de carbono avançou com grande agilidade.

Na China, por exemplo, em que se estabeleceu o mercado de carbono maior do mundo, criado relativamente há pouco tempo, se observarmos o que era a ambição inicial e ver a final, veremos que se começou o debate pensando em um mecanismo vasto, para pegar inúmeros setores, e se terminou delimitado para um conjunto especifico de instalações ou atividades do setor termelétrico. De fato, é um setor que representa boa parte das emissões na China, mas só para exemplificar que a existência dessa infraestrutura científica é condição inevitável para que o mercado seja funcional.

O segundo pressuposto é regulatório. O mercado de carbono é uma forma de o Estado intervir na propriedade e no funcionamento do mercado. A partir do momento em que o setor é regulado, significa que as condições de funcionamento desse setor não vão se dar predominantemente como acontecia até então, a partir de um jogo relativamente livre do sistema de preços com agentes econômicos, cada um perseguindo a sua melhor posição. Passa a ser um campo altamente mediado por padrões que organizam como esse preço vai circular. Hoje, sabemos que no mercado de carbono há uma preocupação enorme dos reguladores de não deixar o preço subir acima de um teto – porque se ficar caro se quebra o setor, que tem que arcar com o custo do carbono – e também não pode cair abaixo de uma base, porque se fica barato demais a política ambiental é vã. Para garantir que esse preço do carbono se mantenha naquela zona de controle razoável, há um imenso esforço de órgãos regulatórios, com um conjunto de exceções que são aplicadas mesmo em mercados avançados, com experiência consolidada. Desse conjunto fazem parte licenças – concedidas a empresas ou algumas instalações que, se forem reguladas, correm o risco de quebrar –; exceções que garantem proteção de algumas atividades com o objetivo de retê-las no país, evitar que busquem outro lugar para operar; e incentivos particulares direcionados para que certas atividades consigam cumprir com exigências regulatórias do setor.

Onde quero chegar? A que a condição regulatória é altamente exigente, e avançou no setor de energia por uma razão clara: se trata de um serviço público, no qual praticamente não se se toma nenhuma decisão econômica sem que haja a mediação de uma norma ou decisão do Estado. Basta olhar como funciona o setor de energia no Brasil. Na agricultura não é assim. É um setor que funciona predominantemente sob um regime de mercado livre. É claro que isso não significa que não haja leis ou regulações estatais. Mas entendemos que a melhor maneira de organizar essa atividade econômica, dada a sua diversidade, complexidade e incerteza do setor, é de fortalecer o regime de mercado para perseguir a melhor alocação dos recursos, em vez de converter o agro numa espécie de serviço público – como aliás é na Europa.

Há ainda um terceiro pressuposto, que chamaria de cultura institucional. Quando se cria um mercado de carbono, pressupõe-se que haja tanto do lado do Estado quando do setor privado uma cultura de regulação. No Estado, é preciso ter um aparato organizacional complexo, com capacidade de compreender a ciência, de fazer estimativa de impacto, custo e potenciais consequências de cada regulação adotada. O que, de novo, acontece no setor de energia, mas não no agro.

Aí entro na sua questão. O mercado de carbono é instrumento muito importante, mas o agro não precisa entrar nesse mercado como mais um setor devedor. Acho que na realidade brasileira e na produção de alimentos, a melhor maneira desse mercado funcionar é reconhecer o papel do agro como gerador, e não como setor devedor. Como ilustrei aqui, o mercado de carbono é um instrumento de governança altamente complexo, sensível, montado em cima de um conjunto de condicionantes científicas, regulatórias, institucionais que foram pensadas originalmente para tratar o setor de energia, que tem características muito próprias, que já tem uma ciência de métricas e mensuração organizada, uma estrutura regulatória constituída, e um serviço público com uma cultura de trabalhar com a regulação pública. A gente quer converter a produção de alimentos numa espécie de serviço público – como, aliás, é na Europa?

Como é a regulação do agronegócio na Europa?

A região é um bom exemplo, por ser o primeiro mercado regulado estabelecido, o mais maduro, robusto, consolidado, mas onde o agro tampouco está incluído.  A meu ver, isso acontece pelas razões que mencionei, mas também por outra: acho que a Europa entende que a melhor maneira de acelerar a transição verde na produção de alimentos é de convidar o agricultor e o produtor do campo a abraçar a agenda ambiental como uma oportunidade de renda, e não como mais uma ameaça de punição. É por isso que lá foi aprovada, no final do ano passado, uma diretriz para organizar, dar segurança a participação do agro como gerador de créditos no mercado voluntário, e não como um setor obrigado a cumprir com exigências sob o risco de pagar, de ter produção a preço elevado e ter que pagar multa. A mesma coisa foi feita nos Estados Unidos, com a aprovação do Growing Climate Solution Act, que também estabelece condições para o agro entrar na agenda climática como um gerador de créditos.

Veja, esses exemplos também levam a um argumento de ordem de comércio internacional. O que temos visto lá fora é que essa busca da preparação do agro e da produção de alimentos para um comercio internacional sustentável tem caminhado cada vez mais buscando criar incentivos para os produtores aprimorarem suas técnicas, tecnologias de produção, e ao fazerem isso buscarem ganhos de produtividade que sejam ao mesmo tempo uma forma de contribuir coma redução do impacto ambiental. Em particular, das emissões de carbono. Então, se vamos participar de um comércio internacional, como participamos, em que estes países caminham nessa direção de estimular, apoiar, financiar com instrumentos de crédito de carbono a produção sustentável, como o Brasil poderia adotar o caminho oposto, com uma espécie de tributação light para minar a competitividade do seu produto? Não faz sentido.

Levando em conta que as regras de comércio internacional estão se estreitando para o agronegócio, entrar no mercado de carbono não colaboraria para a adequação que o agro terá de cumprir mais cedo ou mais tarde?

Quanto a esse tema, acho que a questão fundamental é que o comércio internacional está comprometido com a descarbonização, e os países que lideram esse processo estão estabelecendo uma infraestrutura para cobrar essa descarbonização. A Europa talvez seja o caso mais avançado com o Cbam (Carbon Border Adjustment Mechanism), que por enquanto não vai se aplicar a produtos do agro, mas muito em breve deverá fazê-lo. E o que o Cbam pretende fazer? Ele estabelece uma exigência para que aqueles produtos internacionais que entrem no mercado europeu cumpram no mínimo com o mesmo grau de exigência de descarbonização que o produto europeu tem. A questão fundamental, a meu ver, não é se tem ou não uma lei de mercado de carbono, ou uma regra ambiental. Se fosse assim, o Brasil tem o código florestal mais exigente do planeta. Temos uma lei que criminaliza os ilícitos ambientais, o que ainda hoje é algo raro no mundo. Então, não é ter ou não mais uma lei com ameaça de punição que vai garantir a qualidade do nosso produto lá fora e a abertura do mercado.

Mas essa participação não colaboraria para a criação de métricas de medição, padrões de rastreamento que podem ser exigidos nas exportações no futuro?

O que vai garantir nossa participação no mercado internacional é de fato nossa capacidade de criar uma infraestrutura de métricas e metodologias tropicais ajustadas à nossa realidade, que sejam públicas e acessíveis a todo produtor, em cada esquina do Brasil. A meu ver, entretanto, a maneira de fazer isso não é criando mais uma ameaça ao produtor, como vimos fazendo ao longo da nossa história, em que o direito ambiental e a regulação ambiental se tornaram uma espécie do direito do não: não pode, é proibido, cuidado, vou lhe multar ou prender. Isso acabou criando dentro do setor econômico uma espécie de resistência ou desconfiança da própria agenda ambiental.

O que precisamos fazer é mudar esse sinal e criar movimento nacional para convidar os produtores brasileiros de todas as partes do país a abraçarem a agenda ambiental como oportunidade econômica. E fazer isso de forma com que eles sejam o grande vetor que vai fomentar, estimular e ajudar a construir as metodologias e métricas ambientais ajustadas à nossa realidade. Insisto que criar mais uma lei, mais um regime de cerceamento, a meu ver não resolverá o problema científico e institucional que temos. O que vai resolver é entender o tema do carbono como sinônimo de produto de qualidade, e para perseguir essa qualidade precisamos criar novas formas de gestão baseadas numa economia do conhecimento, apoiada em um conjunto de métricas e metodologias que reconheçam os atributos da nossa produção. Se não fizermos isso – e esse é o ponto da restrição do comércio internacional – o que vai acontecer é que seremos medidos pela régua europeia, ou americana, e sabemos que lá a produção de alimentos em um ambiente temperado tende a ter uma pegada de carbono relativamente maior do que a nossa, que é uma fábrica aberta de fotossíntese. O que mais sabemos fazer é converter carbono que está na atmosfera em comida, energia e serviços ambientais. Mas isso precisamos aprender a medir e colocar nosso balanço para mostrar a eles. Se não fizermos isso, nos submeteremos a uma espécie de roupa mal ajustada às características do nosso corpo.