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Avicultura Industrial em Foco: Canabinoides e suas potenciais aplicações na avicultura e outras cadeias de produção animal, segundo Embrapa

Avicultura Industrial em Foco: Canabinoides e suas potenciais aplicações na avicultura e outras cadeias de produção animal, segundo Embrapa

Autor: José Rodrigo Pandolfi (PANDOLFI, J.R.) 

Filiação: Embrapa Suínos e Aves

A competitividade da avicultura brasileira é expressa tanto na sua capacidade produtiva quanto na conquista de novos mercados. Esse protagonismo se deve à capacidade diferenciada de atendimento aos requisitos sanitários e à constante busca por ganhos em produtividade e competitividade (Talamini, Martins, Santos Filho, 2019). Melhorar o desempenho zootécnico, as condições sanitárias e garantir o bem-estar das aves são metas a serem ultrapassadas a cada dia. Uma das práticas que contribuíram para o alcance deste status sanitário e econômico foi o emprego de antimicrobianos, no tratamento de afecções, como preventivo, bem como melhorador de desempenho. (Huyghebaert et al., 2011). 

Levando-se em conta o cenário de retirada de antimicrobianos como melhoradores de desempenho, os desafios para garantir a saúde intestinal das aves aumentaram na última década (Pandolfi, Mota, 2020). Da mesma forma, outras cadeias produtivas sofrem as mesmas pressões para diminuir ou deixar de usar antimicrobianos. Em se tratando de frangos, a depender das condições de criação, o primeiro impacto negativo da retirada de antimicrobianos pode ser a piora na saúde intestinal, com consequente o aumento do custo de produção.

A saúde intestinal envolve uma série de funções fisiológicas, microbiológicas e físicas cuja interação mantém o intestino em homeostase. Ademais, é impossível abordar a saúde intestinal sem que esta seja relacionada a fatores extrínsecos, como a qualidade da ração, da água, do ambiente de produção, do manejo sanitário e de fatores intrínsecos, como a genética das aves. A somatória destes fatores modula a microbiota intestinal e pode propiciar animais com saúde intestinal robusta ou frágil (Mota, Pandolfi, 2021). Assim, avanços no sistema de produção que aumentem a robustez sanitária, promovam bem-estar aos rebanhos e garantam bom desempenho zootécnico são fundamentais. Neste sentido, o desenvolvimento de bioinsumos e a determinação de processos agropecuários orientando sua utilização é uma das frentes de ação visando a substituição dos antimicrobianos melhoradores de desempenho, preferencialmente buscando bioativos “eco-friendly”, que auxiliem na imunomodulação e colaborem para a integridade da saúde intestinal, a melhoria do bem-estar animal e manutenção ou ganho da produtividade (Kogut, 2019). Compostos obtidos a partir do metabolismo microbiano e de plantas têm despertado bastante interesse quanto ao seu emprego na forma de aditivo ou suplemento alimentar na nutrição e imunomodulação de animais de produção (Clavijo; Flórez, 2018).

Dentre os bioinsumos, um dos grupos de candidatos a ser usado na avicultura são os canabinoides. Dadas suas características e múltiplas funções, a comunidade científica tem se interessado cada vez mais em avaliar seus efeitos em animais de produção. Dessa forma este artigo tem como objetivo abordar o potencial do uso dos canabinoides em animais de produção, especialmente a avicultura. 

O que são os canabinoides?

Os canabinoides são compostos bioativos encontrados na planta Cannabis sativa, sendo o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC) os mais estudados. Diferentemente do THC, o CBD não possui efeitos psicoativos, tornando-o um candidato promissor para aplicações terapêuticas em animais de produção. Ele tem sido objeto de interesse crescente em várias indústrias, incluindo a agricultura e a avicultura. Nos últimos anos, cresceu o interesse em explorar o uso do CBD em frangos de corte, com o objetivo de melhorar o bem-estar animal, aumentar a eficiência de produção e potencialmente beneficiar os consumidores (Fidelis et al., 2021).

A C. sativa é rica em uma variedade de compostos bioativos, conhecidos como canabinoides, terpenos e flavonoides, que possuem diversas propriedades terapêuticas. Ela é uma das plantas mais antigas cultivadas pelo homem, com aplicações industriais, terapêuticas e recreacionais. Embora cannabis e cânhamo pertençam à mesma espécie, suas características químicas, usos e regulamentações diferem significativamente. A C. sativa tem uma longa história de uso humano, com registros que remontam a 2737 a.C., quando o imperador chinês Shen Neng usava a planta para fins medicinais (Ama-me, 2021). No Ocidente, a introdução da cannabis para uso medicinal ocorreu em 1839, quando o médico inglês William O’Shaughnessy publicou o primeiro artigo científico sobre suas propriedades terapêuticas (Ribeiro, 2014). Historicamente, tanto o cânhamo quanto a cannabis foram utilizados por egípcios, gregos e chineses para a produção de fibras e como medicamento (Li, 1974; Chaachouay, 2023).

A diferença principal entre cannabis e cânhamo reside na concentração de tetrahidrocanabinol (THC), o composto psicoativo responsável pelos efeitos eufóricos. A cannabis contém altos níveis de THC, enquanto o cânhamo é cultivado para conter menos de 0,3 a 0,2% de THC, conforme regulamentações em muitos países (Small; Marcus, 2002). O cânhamo é rico em canabidiol (CBD), um composto não psicoativo com propriedades terapêuticas (Andre et al., 2016). Além disso, suas fibras longas e resistentes, são utilizadas na produção de tecidos, papel, bioplásticos e materiais de construção. Suas sementes são ricas em proteínas e ácidos graxos essenciais, usadas na produção de alimentos e óleos (Karus; Vogt, 2004). Em contraste, a cannabis é cultivada principalmente para produtos medicinais e recreacionais, como óleos, tinturas e comestíveis (Small; Marcus, 2002).

A cannabis tem sido estudada por suas propriedades medicinais, especialmente no manejo da dor, náuseas e espasticidade, associadas a condições como esclerose múltipla e câncer. O THC é eficaz no alívio da dor e no estímulo do apetite em pacientes com HIV/AIDS e em tratamento de quimioterapia (Whiting et al., 2015; Repetti, 2019). Já o CBD é utilizado no tratamento de epilepsia, ansiedade e inflamações (Devinsky et al., 2016). Canabinoides, incluindo CBD e THC, têm propriedades anti-inflamatórias e neuroprotetoras, promissoras no tratamento de doenças neurodegenerativas como Alzheimer e esclerose múltipla (Hourfane, 2023). Além dos efeitos individuais dos canabinoides, há um crescente interesse no sinergismo entre esses compostos, frequentemente referido como “efeito entourage”. Este sinergismo sugere que a combinação de múltiplos canabinoides pode resultar em efeitos terapêuticos mais potentes do que os compostos isolados.

Globalmente, a regulamentação da cannabis varia entre os países. Nos Estados Unidos, a FDA regula produtos de cannabis para garantir segurança e eficácia (FDA, 2024). Alguns estados americanos legalizaram a cannabis para uso recreativo e medicinal, enquanto outros mantêm restrições rígidas. Na Europa, a Alemanha e a Holanda têm políticas progressistas para o uso medicinal da cannabis, permitindo cultivo controlado e distribuição para pacientes com prescrições médicas, enquanto França e Suécia mantêm uma abordagem restritiva (European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, 2024). No Canadá, a cannabis é legal para uso medicinal e recreativo desde 2018 (Government of Canada, 2024). No Brasil, a legislação sobre cannabis e canabinoides tem se alterado gradualmente visando foco medicinal. A Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) estabeleceu diretrizes para o controle e regulamentação de substâncias psicoativas, incluindo a cannabis (Martins, 2023). A ANVISA regula produtos derivados de cannabis, permitindo a fabricação e comercialização de medicamentos à base de canabinoides (BRASIL, 2024a). O uso terapêutico do CBD está pacificado na legislação brasileira, permitindo sua prescrição médica e importação para tratamentos específicos (BRASIL, 2024b). Entretanto, o cultivo de cannabis para fins medicinais enfrenta desafios legais, apesar de propostas legislativas para legalizar essa prática (BRASIL, 2024c).

Como e onde os canabinoides atuam no organismo dos animais? 

Os endocanabinoides (canabinoides endógenos) são compostos produzidos naturalmente pelo corpo dos animais, incluindo o sistema nervoso central e periférico. O sistema endocanabinoide, inato em vertebrados incluindo aves e mamíferos, é composto por receptores canabinoides (CB1 e CB2), endocanabinoides e enzimas responsáveis por sua síntese e degradação e diversos processos fisiológicos, incluindo dor, inflamação, estresse, regulação do apetite e metabolismo (Di Marzo, 2009, McPartland et al., 2006). Os canabinoides agem então nos receptores canabinoides, encontrados nos organismos vertebrados, especialmente no sistema nervoso central e sistema digestório, mimetizando os efeitos dos endocanabinoides.

Aplicações potenciais dos Canabinoides em Animais de Produção

Efeitos Anti-inflamatórios: Os canabinoides, especialmente o CBD, têm demonstrado efeitos anti-inflamatórios significativos em animais de produção, reduzindo a inflamação em condições como artrite e mastite. Eles também modulam a resposta imune, diminuindo a liberação de citocinas pró-inflamatórias (Burstein, 2015).

Efeitos Analgésicos: A ativação dos receptores canabinoides pode resultar na modulação da dor, proporcionando alívio em animais de produção. Estudos indicam que os canabinoides podem ser utilizados como coadjuvantes no tratamento da dor crônica, oferecendo alívio sem os efeitos colaterais de analgésicos tradicionais, quando utilizados nas dosagens adequadas (Alves, Fettback, 2024; Fine & Rosenfeld, 2013; Repetti, 2019).

Ação Antimicrobiana: Pesquisas indicam que certos canabinoides exibem atividade antibacteriana contra patógenos como Staphylococcus aureus e Escherichia coli. A capacidade dos canabinoides em modular a resposta imune pode contribuir para o combate a infecções bacterianas (Appendino et al., 2008).

Efeitos no Apetite e Metabolismo: Os canabinoides podem influenciar o apetite e o metabolismo em animais de produção, aumentando a ingestão de alimentos e afetando o gasto energético e a regulação do peso corporal. Esses efeitos são importantes para a eficiência alimentar e a manutenção do peso em situações críticas para a produtividade (Kogan & Mechoulam, 2007).

Potenciais Efeitos Adversos: Em casos de superdosagem, os canabinoides podem causar alterações no comportamento, problemas respiratórios, comprometimento da função reprodutiva e toxicidade aguda. A interação com outros medicamentos pode resultar em efeitos colaterais indesejados (Pertwee, 2008).

Estudos com canabinoides em animais de produção Monogástricos

 A suplementação de dietas com CBD tem mostrado potencial para melhorar a taxa de crescimento e a conversão alimentar em suínos, resultando em maior eficiência produtiva (Pereira, 2020; Silva, 2023). Pesquisas sugerem também que a suplementação com CBD pode reduzir o estresse oxidativo e melhorar a composição de ácidos graxos na carne, resultando em um produto final de melhor qualidade (Pereira, 2020). Além disso, há indicativos de que o CBD pode melhorar a maciez, a suculência e o sabor da carne de suínos (Sousa, 2023).

A administração de canabinoides tem sido explorada também para o manejo da dor. Um estudo realizado por Gagnon et al. (2019) avaliou o uso de CBD em leitões submetidos à castração e observou redução significativa nos comportamentos indicativos de dor, como vocalizações e inquietação. Esses resultados sugerem que os canabinoides podem ser uma alternativa viável aos analgésicos tradicionais em procedimentos dolorosos. Do mesmo modo, o CBD pode ajudar a reduzir a inflamação e a dor associadas a condições como artrite e lesões, melhorando o bem-estar geral dos animais (Silva, 2023). Em estudo de Borges (2022), suínos tratados com CBD apresentaram redução significativa na inflamação e nos níveis de dor.

Estudos preliminares indicam a possibilidade de auxílio na redução do estresse em suínos, promovendo um ambiente mais calmo e melhorando o desempenho produtivo e o bem-estar dos animais (Sousa, 2023).

Estudos e potenciais aplicações na Avicultura

Alguns estudos empregando subprodutos da biomassa de C. sativa como fonte de nutrientes para a ração de aves foram relatados, mas poucos com foco nas ações terapêuticas já conhecidas em animais de laboratório e em seres humanos. Abud et al. (2018) examinaram os efeitos do CBD na saúde intestinal de frangos e observaram melhora na integridade da mucosa intestinal e redução na incidência de enterite necrótica. Esses achados indicam que os canabinoides podem contribuir para a saúde gastrointestinal e o desempenho produtivo das aves. Além disso, foi demonstrado que a suplementação dietética com CBD, em modelos experimentais de enterite necrótica por inoculação de Clostridium perfringens, favoreceu a expressão de genes que contribuem para o bom funcionamento da barreira intestinal, promovendo sua integridade (Konieczka et al., 2020). Também foi observado que a suplementação com CBD reduziu a formação de compostos voláteis que deterioram a carne do peito, incluindo álcoois, trimetilamina e ácido pentanóico, em parte pela diminuição da produção cecal de ácidos graxos putrefativos de cadeia curta. Além disso, o CBD atenuou os efeitos da infecção experimental por C. perfringens (Konieczka et al., 2022). 

Em dois experimentos distintos, Jing, Zao e House (2017), observara que a inclusão de óleo de cânhamo de até 8% em dietas para poedeiras e 6% em dietas para frangos de corte fornecidas por óleo de sementres de cânhamo (HO) ou “Hemp ômega (HΩ – produto equivalente ao HO) não afetaram negativamente o desempenho geral das aves. Todavia resultou no enriquecimento de PUFAs n-3 (ácidos graxos poliinsaturados n-3) e GLA (ácido gama-linolênico) em ovos e carne, enquanto houve redução de MUFAs (ácidos graxos monoinsaturados). Em relação à aves de postura, os resultados obtidos no trabalho de Rbah et al., 2024, demonstraram que a suplementação de semente de cânhamo (HS) até um nível de 30% leva a mudanças vantajosas na composição lipídica do fígado, incluindo um aumento notável nos níveis de PUFAs n-3, uma diminuição nos níveis de colesterol e um aumento nos níveis de tocoferol. A concentração mais adequada para o suplemento pareceu estar em um nível muito baixo, não excedendo 10% de HS. 

É interessante destacar que o resíduo do processamento da cannabis (CR) apresenta bom potencial como um aditivo alimentar alternativo na produção de frangos de corte. Balenović et al., (2024) observou um efeito antimicrobiano e imunomodulador favorável na produção de frangos de corte em experimento utilizando folhas de C. sativa na alimentação de frangos como aditivo fitogênico na ração. Além disso, Sopian et al. (2024) também demonstraram que a suplementação de CR pode melhorar a morfologia

Perspectivas Futuras e Áreas de Pesquisa em Potencial

O uso de canabinoides em animais de produção somente será realidade se houver regulamentação legal que o ampare. Além disso, haveria desafios regulatórios em nível internacional, visto que a falta de harmonização nas regulamentações entre países pode criar barreiras ao comércio. Tecnicamente, entretanto, trata-se de área promissora ainda dependente de grandes investimentos em pesquisas adicionais para entender completamente os mecanismos de ação, a eficácia terapêutica e a segurança desses compostos. Eventuais estudos futuros devem focar em ensaios clínicos, de desempenho, avaliação de longo prazo dos efeitos dos canabinoides e o desenvolvimento de diretrizes claras para seu uso na produção animal. Havendo possibilidade legal para estudos, entre as questões a serem consideradas estão:

  • A determinação de dosagens eficazes e seguras, bem como as melhores vias de administração;
  • A viabilidade econômica ou análises de custo-benefício;
  • Conhecer possíveis interações entre canabinoides e outros medicamentos ou suplementos comumente utilizados na produção animal;
  • Desenvolver formulações específicas para aves de diferentes propósitos e idades;
  • O estabelecimento de limites máximos de resíduos (LMR) para canabinoides em produtos de origem animal, e os períodos de carência apropriados visando a segurança alimentar;
  • No caso do uso em larga escala na produção animal, qual seria o impacto da excreção de canabinoides e seus metabólitos no meio ambiente, incluindo solo e recursos hídricos?
  • A possível presença de canabinoides em produtos de origem animal levanta questões sobre a exposição dietética. Assim, será necessário realizar avaliações de risco abrangentes para determinar os níveis seguros de exposição dietética a estas substâncias.

Considerações finais

O uso de canabinoides, particularmente o CBD, em animais de produçãorepresenta uma fronteira promissora na medicina veterinária e na zootecnia. Os potenciais benefícios abrangem desde a melhoria do bem-estar animal até o aumento da eficiência produtiva e da qualidade dos produtos. No entanto, é crucial que o avanço neste campo seja legal, guiado por pesquisas rigorosas e considerações éticas. À medida que a compreensão científica se aprofunda, com a realização de novos estudos e as barreiras regulatórias sendo abordadas, os canabinoides podem se tornar uma ferramenta valiosa na produção animal.