Redação (02/09/2008)- Galinha, boi e porco nascem predestinados a servir à humanidade. A carne de todos eles vai à mesa. A pele de um vira casaco e sapato, os ossos, botão e gelatina. A discussão é como conseguir manejá-los de uma maneira que amenize o sofrimento. Oferecer uma morte menos dolorosa é o propósito do chamado abate humanitário, às vésperas de passar por uma revisão inédita no Brasil.
Pela primeira vez, uma parceria entre uma ONG internacional, a WSPA (sigla em inglês para Sociedade Mundial de Proteção Animal), com sede em Londres, e o Ministério da Agricultura prevê uma campanha do Programa Nacional de Abate Humanitário, que terá início em 2009.
Como diz a veterinária Charlí Ludtke, 30, da WSPA, coordenadora do programa, carne é uma responsabilidade de todos. "De quem produz, de quem abate e até de quem a consome." Cinco profissionais, entre zootecnistas e veterinários, começam a ser treinados em outubro para percorrer 700 frigoríficos de Santa Catarina, do Paraná, do Rio Grande do Sul e de São Paulo nesta primeira etapa do projeto.
As normas do abate humanitário de suínos, aves e bovinos vão ser transmitidas por meio de DVDs, apostilas e aulas práticas e teóricas. A ação conjunta de uma ONG internacional e do governo brasileiro segue o modelo consagrado em países desenvolvidos. Na Inglaterra, por exemplo, a Universidade de Bristol age em parceria com frigoríficos britânicos, para desenvolver técnicas de abate humanitário, dando cursos e treinamentos de capacitação, inclusive no quesito transporte, o que é obrigatório em toda a União Européia. Lá, ao contrário do que ocorre no Brasil, os condutores precisam passar por um programa sobre o bem-estar animal antes de sair pelas estradas transportando carga viva.
Por aqui, a idéia é ensinar, por exemplo, a carregar animais de fazendas e granjas para os frigoríficos de modo que eles não sofram tanto durante o trajeto. O embarque e o desembarque devem ser feitos de uma forma mais tranqüila, que atenda às boas práticas de manejo.
Matadouros e abatedouros do Estado de São Paulo são obrigados, desde 1995, a utilizar métodos científicos e modernos que impeçam o abate cruel de animais. Mas nem todos seguem a lei. O índice de carne clandestina varia de 20%, nas regiões mais abastadas, a 60%, nas mais pobres do país. Nesses casos, o abate é feito ainda de forma primitiva, cruel e violenta. "O transporte é muito precário. Os animais sofrem durante o trajeto: bois são pisoteados, frangos acumulam fraturas e machucados. No abate, suínos são esfaqueados com punhaladas no coração e jogados em tanques para escaldadura, muitas vezes ainda vivos", critica Sônia Fonseca, presidente do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal.
Uma das líderes do movimento para que o abate humanitário se tornasse lei em São Paulo, Sônia é categórica: "É claro que não existe forma boa de matar, mas, no momento, o abate humanitário é uma maneira de diminuir um mal que não podemos evitar".
Bem-estar X abolição
É aí que, com o perdão do trocadilho, a porca torce o rabo. Na opinião de alguns defensores dos animais, pouco importa colocar música clássica para os bois ouvirem ou colorir as granjas com tampinhas de garrafa para as galinhas "brincarem" se o destino é um só: a morte.
O abate humanitário não é visto com bons olhos por todos os ativistas. Dentro das organizações de defesa animal, existem duas correntes: a do bem-estarismo e a do abolicionismo. A primeira prega melhores condições de criação e abate, como é o caso da WSPA, parceira do governo nesse projeto. A segunda clama pelo fim da exploração animal.
Nesta última, enquadra-se a entidade do nutricionista George Guimarães, 34, presidente do Veddas (Vegetarianismo Ético, Defesa dos Direitos dos Animais e Sociedade). Para ele, qualquer ação que vise a melhorar o bem-estar animal tem interesses comerciais e perpetua a exploração, porque cria na população a falsa impressão de que eles têm uma vida digna. "Os animais não têm interesse em serem explorados. Dentro desse cenário, essa ação é contraproducente."
Nina Rosa, 64, presidente do instituto que leva seu nome, segue o mesmo raciocínio de George. Segundo ela, de humanitário, esse abate não tem nada. "Ele prejudica o trabalho de sensibilização das pessoas", acha ela. "É uma anestesia de consciência." O instituto lançou um documentário chamado "A Carne é Fraca", sobre o consumo da carne e suas conseqüências. Feito em quatro idiomas –português, francês, inglês e espanhol–, o vídeo, que está sendo distribuído para 400 organizações em todo o mundo, conta a "trajetória de um bife", desde o nascimento de bezerros e frangos até o abatedouro. Contém cenas chocantes.
A criação intensiva de animais para consumo humano, na avaliação da ativista paulistana, é a maior causa do aquecimento global. "Fazem queimadas para dar lugar ao pasto e para plantar grãos para alimentar bois -isso sem contar o assoreamento dos rios. E não podemos esquecer que a floresta amazônica está sendo devastada para virar pasto."
Como precisa de grandes pastagens, o gado normalmente é criado longe da área de consumo, o que implica emissão de carbono para o transporte da carne e, em muitos casos, desmatamento da região. Este é considerado o primeiro fator de deslocamento da fronteira agrícola, com efeitos diretos sobre a floresta amazônica.
O "grito" das entidades encontra eco em órgãos oficiais. Estudos da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) mostram que a criação de animais para consumo humano é realmente uma das maiores causas de problemas ambientais, incluindo aí o aquecimento global, a degradação da terra, a poluição da água e do ar e a perda da biodiversidade. Há até uma pesquisa que revela que ela seria responsável por 18% do efeito estufa, com a participação direta da produção de ração para animais, à base de grãos.
Na Europa e nos EUA, não faltam iniciativas anticarne ancoradas na problemática ambiental. O ex-beatle Paul McCartney, vegetariano veterano, lançou em junho na Inglaterra o "Meat Free Mondays" (segundas-feiras livres de carne), com a intenção de encorajar os carnívoros a consumir comida vegetariana ao menos uma vez por semana, citando o comunicado da ONU como uma boa medida para cortar a carne do cardápio. Uma das organizações mais ativas (e polêmicas) do mundo é a norte-americana Peta (Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais, da sigla em inglês).
Só para ter uma idéia de uma de suas controvérsias, a entidade chegou a comparar os matadouros a campos de extermínio nazistas. Dona de uma ousada campanha a favor do vegetarianismo, a Peta decidiu, no mês passado, centrar fogo em carnívoros famosos na sua mais recente empreitada contra a morte dos animais.
Sônia, do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, rejeita essa divisão entre as ONGs. "No fundo, todos somos abolicionistas. Não tenho pretensão de impedir que as pessoas comam carne. Se isso não é possível no momento, por ora, vamos minimizar o sofrimento dos animais", defende.
O problema é que uma questão permanece aberta: o brasileiro não dispõe de ferramentas para identificar, na hora da compra, se o produto obedeceu às normas de bem-estar animal durante a criação e o abate, como é comum na Europa e em parte dos EUA.