Seis meses depois de autorizadas, as trocas de mercadorias entre Brasil e Argentina em reais e pesos responderam por insignificantes 0,12% da corrente de comércio bilateral. Segundo empresários ouvidos pelo Valor, os principais motivos do desinteresse do setor privado são o risco cambial, a falta de financiamento em real, e a percepção de que o benefício é restrito.
O sistema de pagamentos em moeda local movimentou R$ 32 milhões entre outubro de 2008, quando foi implantado, e março passado (R$ 30 milhões em exportações e R$ 2 milhões em importações), conforme o Banco Central do Brasil. Pelo câmbio médio, isso significa US$ 13,9 milhões, uma fatia ínfima dos US$ 11,5 bilhões do comércio entre os dois maiores sócios do Mercosul no período.
O governo brasileiro avalia que as empresas ainda não conhecem o sistema e que sua implantação coincidiu com um momento crise, que reduziu em quase 40% o comércio entre Brasil e Argentina no primeiro trimestre deste ano. “Um dos principais problemas que explica a baixa utilização é a falta de conhecimento do mecanismo”, disse Lytha Spíndola, secretária-executiva da Câmara de Comércio Exterior (Camex).
Na visão do setor privado, outra razão que emperra o pagamento em moeda local é a falta de credibilidade do Mercosul. Os empresários estão preocupados com as barreiras burocráticas impostas pela Argentina, para reduzir o déficit comercial em tempos de crise. Os exportadores reclamam das licenças não-automáticas para seus produtos, enquanto os importadores de trigo se queixam dos impostos de exportação.
Segundo Marcello Stewers, diretor de exportação e marketing da Teka, o pagamento em moeda local despertou uma forte curiosidade dos clientes argentinos no início, mas não foi fechado nenhum negócio. “Chegamos a fazer uma tabela de preços em reais, mas não decolou”, disse. Ele explica que as redes varejistas multinacionais adotam o dólar como padrão global, enquanto os clientes locais ficaram preocupados com o risco cambial.
No sistema brasileiro-argentino, o preço do produto é fixado na moeda do exportador e o risco cambial fica com o importador. O negócio é fechado pela paridade do dia entre real-dólar e dólar-peso. Os BCs compensam o saldo líquido diariamente em dólares. Nas vendas a prazo, o risco é significativo, porque o negócio é fechado hoje, mas só é consumado em 20 ou 30 dias. Uma forma de reduzir o risco é fazer hedge, mas os bancos não dispõem desse instrumento em pesos ou reais.
“Em 90% dos casos, os importadores nem fazem hedge. Mesmo assim, preferem correr o risco do dólar ao invés do risco do real”, disse Stewers. A Argentina responde por 35% das exportações da Teka. O executivo conta não conseguiu realizar nenhum embarque nos últimos 30 dias, depois que o governo local passou a exigir licenças de importação para produtos de cama, mesa e banho. “Vamos falar a verdade. O Mercosul já virou piada”, disse.
A fabricante de calçados West Coast também não utilizou o pagamento em moeda local em suas vendas para a Argentina. Conforme Rui Sippel, diretor financeiro, é impossível conseguir empréstimo para capital de giro a um custo acessível com os bancos, os chamados ACCs (Adiantamento de Contrato de Câmbio), com base em um contrato de exportação em reais. As taxas de juros dos ACCs são mais baratas exatamente porque utilizam empréstimos tomados pelos bancos no exterior em dólares.
“O mercado financeiro é complexo. Não adianta resolver só uma ponta”, disse Sippel. Ele afirma que a ideia de pagamento em moeda local é “muito boa”, porque reduz o custo financeiro, mas que para esse tipo de convênio funcionar os dois países precisam de mais estabilidade econômica. “É utopia pensar nisso nesse momento”, disse. O executivo reclama que a West Coast está com um expressivo volume de calçados em estoque porque não consegue as licenças de importação do governo argentino. “São produtos de moda. Mais 60 dias e não vai ter mercado”, disse.
Quando o sistema foi lançado, o BC anunciou como meta atingir 10% do comércio bilateral, com destaque para as pequenas e médias empresas, que ainda não possuem sistemas de comércio exterior montados. No entanto, uma boa perspectiva de utilização do mecanismo está também nas grandes companhias, que trocam mercadorias e insumos entre suas próprias unidades dos dois lados da fronteira.
A Vulcabras ainda não utilizou o pagamento em moeda local, mas pretende que ele represente 100% de suas operações no futuro. A decisão é bem mais simples, porque a empresa exporta de sua fábrica no Brasil para sua própria distribuidora na Argentina. “O pagamento em real apenas simplifica. Corro os mesmos riscos de antes”, disse Milton Cardoso, diretor-executivo da Vulcabras. Ele disse que ainda não utilizou o sistema porque a regulamentação demorou, e conta que as primeiras licenças de importação em reais estão paradas na burocracia do governo argentino.
Nos pagamentos à vista, em que não há risco cambial envolvido, a resistência dos empresários em deixar o dólar também é grande por hábito e por não enxergar os benefícios do convênio Brasil-Argentina. “Estamos tão acostumados a trabalhar no dólar. Ainda não percebi qual seria o benefício”, disse Luiz Martins, presidente do Moinho Anaconda, que compra trigo da Argentina, e do Sindicato da Indústria do Trigo do Estado de São Paulo (Sindustrigo). Ele explica que os preços do grão são cotados em dólar nas bolsas de Chicago e Kansas e que seria complicado fazer a conversão para a moeda local em cada negócio.
Os moinhos brasileiros também enfrentam problemas com o vizinho, um tradicional fornecedor. O setor reclama dos pesados impostos de exportação e do tratamento diferenciado para a farinha de trigo. Enquanto o grão é taxado em 23%, o imposto do produto acabado é 13%. Na última reunião bilateral, Martins propôs igualar o imposto ou limitar a exportação argentina de farinha de trigo a 240 mil toneladas este ano, pouco menos da metade de 2008. “Os argentinos alegaram que nosso câmbio está desvalorizado e que temos incentivos tributários estaduais. É uma conversa que não constrói nada”, reclamou o empresário.
Pelos cálculos do governo brasileiro, o sistema de pagamentos em moeda local significa uma economia de 2% a 3% no valor da exportação ao eliminar as operações cambiais. “É um dado objetivo: 2% para o exportador é um fator de atração por si só. Sem falar na menor burocracia”, disse Lytha, da Camex. Segundo os dados do governo, as empresas que optam pelo o sistema percebem o ganho e voltam a utilizar. O recorde é uma empresa que já fechou 16 negócios em reais.
Os técnicos do governo também argumentam que muitas operações já realizadas pelo sistema de pagamento em moeda local só serão detectadas no futuro por conta de uma defasagem no Banco Central, que demora para identificar o que é feito pelo sistema e o que se trata de exportações em reais simples nas quais o importador detém previamente a moeda brasileira e não precisa de compensação dos BCs. Segundo um técnico da Camex, as exportações em reais para a Argentina chegaram a 1,7% do comércio bilateral em janeiro e 0,94% em fevereiro, acima dos 0,4% de novembro.