Após meses de guerra comercial, o governo argentino começou a normalizar o ritmo de liberação das licenças não automáticas de importação para produtos brasileiros, que vinha ultrapassando o prazo legal de 60 dias fixado pela Organização Mundial do Comércio (OMC).
A redução do tempo de análise – houve queixas de demora superior a 240 dias – já permitiu à indústria brasileira reconquistar a liderança no mercado argentino de calçados. O governo brasileiro diz que está superado o problema de atrasos na liberação de autopeças, à exceção de problemas “pontuais”, atribuídos a falhas de duas empresas no preenchimento das guias de exportação. Fabricantes de pneus também estão prestes a receber uma boa notícia: o Ministério da Produção da Argentina, a pedido dos importadores e comercializadores, prometeu flexibilizar o processo de licenciamento nos próximos dias.
“A situação melhorou muito desde a retaliação do governo brasileiro”, diz Heitor Klein, diretor-executivo da Abicalçados, a associação do setor calçadista brasileiro. Em agosto, os calçados brasileiros perderam a liderança histórica que tinham no mercado argentino para fornecedores asiáticos, principalmente a China. Até outubro, haviam exportado ao país vizinho menos de 9 milhões de pares. Naquele mês, o Ministério do Desenvolvimento recebeu sinal verde do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para retaliar a Argentina, com a aplicação das mesmas licenças. Em apenas dois meses, novembro e dezembro, foram liberados 4,9 milhões de pares – cerca de 35% do total exportado em todo o ano passado.
“Os argentinos só reagem quando nós endurecemos. Isso já aconteceu outras vezes”, avalia Klein. Ele diz que a emissão das licenças de importação têm ocorrido em 30 dias e permitido aos exportadores programar melhor suas vendas. No fim do ano, segundo a consultoria argentina IES, o Brasil já dominava 52% das importações de calçados feitas pelo vizinho. Ainda é menos do que a participação de 62%, alcançada em 2007, mas suficiente para reverter a progressiva perda de mercado para os chineses e demais asiáticos.
O atraso nas licenças provocou o cancelamento de pedidos de 1,5 milhão de pares em 2009, diz a Abicalçados. Com a normalização do processo, ao fechar novas encomendas, as empresas passaram a dar entrada nos pedidos com um mês de antecedência, a fim de embarcar os calçados assim que saem da linha de produção. As perspectivas voltaram a ser favoráveis com a retomada do crescimento da economia, na avaliação de Klein, que adianta: a associação trabalhará em propostas para aumentar, em 2011, o volume de 15 milhões de pares definidos no acordo voluntário de restrição às exportações. Esse acordo vale para os anos de 2009 e 2010.
“Houve uma melhoria considerável e diminuíram as reclamações dos exportadores brasileiros”, afirmou ao Valor o secretário de Comércio Exterior, Welber Barral. Segundo ele, após a reunião que os presidentes Lula e Cristina Kirchner tiveram em novembro, o prazo médio de liberação das licenças não automáticas pela Argentina foi reduzido para 30 a 35 dias. “Idealmente, não deveríamos sequer ter licenças no comércio bilateral, mas isso é algo que ainda precisaremos negociar com o governo argentino”, diz Barral.
A próxima rodada de negociações está marcada para os dias 4 e 5 de fevereiro, em Buenos Aires. Além de levar a proposta de levantar restrições a produtos argentinos sujeitos a licenças no Brasil, como alho, o governo apresentará outro argumento: o de que 2010 será um ano de expansão dos investimentos diretos de empresas brasileiras no exterior, por causa do reaquecimento da economia e do câmbio favorável, e elas precisam de “previsibilidade” no comércio para instalar-se na Argentina, principal sócio do Brasil no Mercosul.
O Valor apurou que, no país vizinho, o Ministério da Produção criou recentemente um grupo especial de analistas dentro da Secretaria de Indústria para agilizar a liberação das licenças para produtos brasileiros. O ministério diz ter salvado 500 mil empregos na indústria local graças ao freio nas importações em 2009, introduzidos em meio aos temores de uma crise cambial.
Nos próximos dias, serão divulgadas medidas para agilizar a compra de pneus. No ano passado, até novembro, a importação argentina de pneus brasileiros caiu 53%. Mas a pressão da indústria automotiva local, que atualmente vende ao Brasil 51 de cada 100 veículos fabricados na Argentina, e dos comercializadores levou o Ministério da Produção e o poderoso secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno, idealizador do mecanismo, a decidir na quinta-feira passada pela flexibilização das licenças não automáticas para pneus importados.
Há quem ainda considere os avanços muito tímidos depois de toda a confusão criada, com perda de clientes na Argentina, que deram preferência à segurança de comprar de fornecedores locais. “Houve sinais de normalização, mas não sentimos a extensão disso a todos os segmentos”, afirma Domingos Mosca, coordenador da área internacional da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit). Ele cita tecidos, índigo e roupas de cama como os segmentos mais prejudicados com as restrições adotadas pelo país vizinho
Mosca, embora relativize as queixas sobre desvio de comércio para fornecedores chineses, acredita que o estrago causado pela descontinuidade no atendimento a antigos clientes de produtos brasileiros “será revertido muito lentamente”. Ele tem dúvidas sobre a capacidade argentina de agilizar o processo de liberação das licenças. “No Brasil, é tudo informatizado. Se você for ao departamento responsável no Ministério da Produção, o que se vê é uma pilha de pedidos para análise manual. É uma cena dantesca”, descreve o executivo.